Saturday, May 22, 2004

Quatro linhas femininas



Uma.Uma linha.Manuel sorri do lado de lá da linha.Tem 44 anos, é enfermeiro, casado, tem um filho.
Duas.Duas linhas.Guilherme, divorciado, 34 anos, duas filhas.
Três.Três linhas. Rita, futura advogada, 24 anos, solteira,independente.
Quatro.Quatro linhas.Nuno, 14 anos, não faz nada.
Nas quatro linhas que se seguem, falam-se e cruzam-se quatro vidas. Quatro jogos. Bola ao centro.Prim.Começou. É dia quatro do quarto mês de 2004.Há sol. Estádio do Quarteto, Quarteira. Manuel lembra-se do filho, 4 anos, menino reguila, adepto incondicional da equipa do Quarteto.A mulher, grávida de 4 meses, está em casa a fazer a quarta mantinha de lã para o berço que já dorme no quarto do bebé que ha-de vir.Manuel puxa de um cigarro.O quarto do dia.Abençoado estádio que lhe permite fazer estas diabruras sem se considerar um demónio maníaco a um passo de deixar negros os ainda não pulmões do bebé que ha-de vir.Guilherme olha o relógio. Quatro da tarde.Daqui a nada volta a casa. Não tem ninguém à espera. Já lá vão 4 anos.O telemóvel da Rita estremece. Uma mensagem.«Aparece logo.Fico à tua espera....no quarto».Quatro pontos.Quatro reticencias.Não foi engano.Três é banal.Quatro é mais do que três, ensaia outros anseios.... Rita sorri para o telemóvel, ajeita o cabelo,cora baixinho.Nuno grita.Porra!Foi quase golo.Puxa as calças,alisa o suor.Olha para o relógio.Quatro e quatro.Foi num dia quatro de outro ano que lhe tiraram o pai, tinha ele quatro anos.Quatro balas no peito - numa guerra que não viu. Manuel encosta-se, Guilherme alinha-se, Rita ajeita o decote,Nuno olha para nada. Quatro vezes quatro.Num dia quatro de um quarto mês de 2004. Não é muito normal, mas esta história só faz sentido - se é que é possivel ter sentido uma história escrita em volta de um quatro, se acabar com o numero quatro a marcar o quarto golo da equipa do Quarteto, na Quarteira.Reza a história que agora escrevo, às quatro horas, quatro minutos e quatro segundos.

Thursday, May 20, 2004

Quatro linhas

Agarrado. O sol, os 31 graus e as miúdas em bikini tornam-se insuficientes para me levantar do sofá. Perdem para o frigorífico até cima de cerveja, para os 2 maços de cigarros e para o marisco enviado pelo avô.
Sozinho sou tanta gente: o motorista do autocarro, o peão na passadeira, o homem da portagem, o senhor do talho, o executivo, o servente de pedreiro, o técnico informático. Todos somos um. Ansiosos da final, campeões de trazer por casa.

A televisão convida para a minha sala os jogadores no aquecimento já no rectângulo do jogo. Drogo-me com aquelas quatro linhas, fazem-me super-homem, imbatível, destemido. Agarrado até ao fim. Vamos ganhar.

Friday, May 14, 2004

Regresso após lesão

Não jogar com as letras durante 27 dias deve doer tanto como estar sem tocar numa bola durante o mesmo período de tempo.
Em diversas ocasiões, parar é um sentido obrigatório: caminho solitário para perfeição.
Estar de volta é estar melhor, é sentir o sentido da saudade. No mundo das palavras é um exclusivo: PORTUGAL.

É bom inventar frases, partir para cima do teclado, ir à esquerda e à direita, em velocidade, fintar lugares comuns, parar a respiração com o peito, chutar, em força, com jeito, letras e letras, fazer golos de improviso.
Amo as palavras e os passes. As frases, as jogadas. Os textos e os jogos. Livros e campeonatos.

Thursday, May 13, 2004

mais de mim em: www.calor.blogspot.com

Sunday, May 09, 2004

Fim de campeonato
(ela)




E pronto. Ponto final. Fim de jogo. Fim de campeonato. Virar de página.
Esta tarde enquanto esperava cheia de frio pelo fim do jogo entre o Moreirense e o Alverca, dei por mim a pensar
que o futebol é mesmo mesmo muito parecido com a vida. Frase feita, bem sei, frase escrita e dita por um amigo
que também cabe neste texto. Mas é verdade. Esta tarde vi os olhos tristes dos homens de Alverca a deixarem os olhos alegres dos jogadores do Moreirense. E vi-me a mim, a olhar para ambos. Fora de jogo, olheira de novos talentos, desejosa de encontrar nuns e noutros motivos que me fizessem sorrir. O futebol é como a vida. Tem partes, substituições, lesões, cartões vermelhos, advertências. Há sempre alguém, ingratamente conhecido por andar vestido de negro, que é como se de uma sombra se tratasse, um aviso de cuidados. E afinal, está lá sempre. Quer os jogadores gostem ou não das suas decisões. O futebol é como a vida e o arbitro de futebol é como a morte. Corre-se corre-se e para-se quando ele quer. Quando ele diz «já chega», mesmo que o resultado não interesse a uma das equipas ou a ambas, mesmo que os adeptos chorem nas bancadas desejosos de um minuto mais para mudar o destino de um jogo, que às vezes é também o destino de uma vida, de um clube, de uma nação. Ou mesmo que o jogo apeteça continuar pela magia que nasce dele. E no entanto o arbitro manda parar e não fala. Faz-se ouvir de outra forma, chega implacável, sem nem mais nem porquês. E fim. O jogo acaba. E renasce noutro campo, noutro dia, mas nunca de forma igual, mesmo que os jogadores sejam os mesmo. É por estas e por outras que eu não tenho dúvidas nenhumas em afirmar que o futebol é como a vida, independentemente das caras, dos sorrisos, das histórias e estórias, dos amores e desamores. Não há dois clubes iguais, dois jogadores com a mesma magia. É por isso que o futebol é um acto de amor. E a vida é única. Tal como não há dois arbitros iguais. Ainda que quase todos sejam motivos de queixas e lamurias. Como a morte.

Monday, May 03, 2004

Num domingo de Maio
o fim de ti



Arrastam-se as cadeiras. O apito final está aí.
Colarinhos bem passados, é domingo, dia de festa. Não há gente neste espectáculo.
Apenas os artistas desfilam as suas roupas domingueiras neste Domingo sem gente e sem festa.
Ao longe advinho-te nas bancadas. Uma sombra de calor percorre-te e deixa-te ainda mais azul. Ris.
Ris de tudo e de nada. Dizes-me que sou tua. Lá baixo, lá baixo onde o espectáculo é espectáculo, lá baixo, dizia, joga-se outro mundo. Redondo.
Tu estás sózinho na bancada. Ris. Sorris. Abanas a cabeça a cada lance perdido. Se fumasses imaginava-te a deitar o fumo
em circulos e mais circulos, que se perderiam no céu. Azul. Mas não fumas. E ris-te. Passas a mão pelo cabelo.
Golo. É golo.
Levantas-te ligeiramente. Vejo-te o corpo desenhado. Voltas a passar a mão no cabelo. Castanho. E ris. Beijas-me. Passeias-me as mãos pelas pernas pouco cruzadas. Domingo. Domingo de Maio.
Sózinha vejo-te sózinho com os olhos pregados no espectáculo. Choro a tua tristeza. Choro a minha solidão. Choro a nossa vida. Choro-nos enquanto tu ris. Sózinho.
É domingo, dia de jogo, dia final da festa. Não há gente no espectáculo. Imagino-te sentado numa das muitas cadeiras. E choro. Choro a tua ausência. A tua morte. Porquê?«Só Deus tem os que mais ama.»
Num domingo igual ao que aí vem, num dia de Maio como o que se aproxima. E o teu corpo ainda está presente, moldado em mim palmo a palmo, beijo a beijo. E no entanto foi num domingo como aquele que aí vem que tu foste embora. Fim de jogo. Fim de mim.