Tuesday, November 09, 2004

vou arranjar os pés

vou, vou, pôr-me bonita. Vou arranjar os pés, fazer as unhas, pintar os lábios e cortar o cabelo. Mas antes vou às compras. E nem almoço. Faço tudo de enfiada, ai faço, faço. Faço, e ai dele, logo à noite se não olha para mim.

Já não me lembrava de me ver num vestido. Nem de me ver assim mulher.

Com a cabeça no vestido preto, começo pelo cabelo e as unhas na mãe da Zulmira. A prima lima a conversa com os dedos na mão; a mãe corta o discurso e penteia para outro lado. Pronto já está.

Só falta arranjar os pés. Vou um ante o outro, passo curto, apressado, a casa da Júlia. Atende-me num quarto de hora e já está fico pronta.

Chego a casa, o Henrique não dá por mim, ainda bem, não dá por mim e assim vou ao quarto. Ponho o vestido e preto e deixo-me à frente dele. Estás doente, pareces com má cara, diz-me sem reparar. Não, não, estou cansada, fui à Júlia arranjar os pés.
Deixo-o a falar sozinho.

"Olha, diz à Júlia se amanhã tem tempo para receber os jogadores do sporting"...

e disse mais qualquer coisa

Monday, November 08, 2004


Um homem mete a mão na consciencia.
E tira-a. É pequena e cinzenta. Redonda, jeito de bola. Cheira a queijo suiço. O Homem estremece. Pega-lhe devagar. A mão abre-se e fecha-se, a consciência aumenta e diminui de volume, tipo bola anti-stress. O Homem adapta-lhe as falanges, as falanginhas e as falangetas. A consciência cheira cada vez mais a queijo suiço. Esquece-se o Homem de a pôr ao fresco, apanhar ar. Um rato aproxima-se. Fareja-a. Não a come. Vomita-lhe o cheiro. O Homem fecha a mão outra vez. Guarda-a. Fora da alma a consciência oxida-se. O rato dá meia volta, mete-se na toca. Ali não cabe a consciência. Está salvo o rato. A mão do Homem dá voltas pelo ar. A mão de Deus enfia a consciência colectiva numa baliza branca. O estádio está cheio. O Homem esvazia-se. A noite cai devagar e a mão direita ampara-lhe a queda. A mão esquerda brinca ao lado do coração com a bola cinzenta. O Homem adormece numa migração de consciências e sonha com o rato. O rato aproveita o escuro e sai da toca. Tem fome. Gosta de queijo. Tem mesmo muita fome. E a bola cinzenta está ali, perto, na mão do Homem, cheira mal mas é um alimento, e o rato tem fome. O rato come. Come a falange, a falanginha e a falangeta. E a bola cinzenta solta-se em correrias loucas para dentro da toca do rato.



Clássico
(ela)


Duas horas menos dois minutos. Passo o guardanapo pela boca. Duas horas menos um minuto. Levanto o dedo. Duas horas. « A conta, por favor!». Sem favor trazem-me a conta. Pago. Duas e cinco. Já estou do outro lado da porta. Duas e dez. Chega o nº44:Baixa. Metro. Duas e vinte e dois. Metro outra vez. Rua do Passeio Triste. Duas horas e trinta. Chego. Encosto-me na cadeira. Ajeito a gravata. Passo a mão pela testa, pela cabeça, pelo cabelo. Um registo, dois registos, três registos. Uma certidão de óbito, duas certidões. Três de casamento, quatro de divórcio. Quatro e meia. Um cigarro. Quatro e trinta e dois. Acabou o cigarro. Sento-me outra vez. Quase cinco. Quase quase cinco. Cinco. Cinco horas. A rua está cheia. Eu esvazio-me aos poucos a caminho de casa. A casa. A minha casa. Cheira a molhado. Não chove, mas já choveu e eu tenho por hábito guardar sempre a chuva dentro de minha casa. Seis horas. Faço o jantar? Faço. Sopa. Bhammm... Oito. Sento-me no sofá. Ajeito os chinelos. Xadrez. São de xadrez os meus chilenos. Oito e pouco. Oito e pouco. Oito e pouco. Oito e meia menos pouco. Oito e meia menos pouco. Oito e meia. Uf. Marca? Marca? Ganho? Ganho? Vai? Vai? Dez menos pouco. Dez menos pouco. Dez menos um quarto. Desligo a televisão. Dez horas. Desligo a luz. Dez e dez. penso. Dez e vinte. Penso. Dez e meia. Viro-me. Onze horas. Penso. Outra vez. Onze e vinte. Uff.Onze e meia. Ai.Onze e quarenta. Penso outra vez. Onze e quarenta e cinco. Só já tenho mais quinze minutos para pensar. Penso. Meia-noite menos dois. Meia-noite menos um. Meia-noite. Até amanhã.