Sunday, September 26, 2004

A história da Meia Lua
(versão feminina)
Nunca ninguém ousara perguntar-lhe a quem pertencia a barriga que gerara tão bela criatura. Era enigma. Coisa falada em segredo, três vezes benzida antes de pronunciar qualquer palavra relacionada com tal ventre. Mas como era linda aquela menina! Tinha olhos pretos, tão pretos, que ao pé deles, a noite parecia irmã do dia. Quem era o pai todos sabiam. Quem era a mãe… ninguém se atrevia sequer a querer saber. Parecia coisa de fadas. Ou diabos. Mas passemos à apresentação da história que se segue. Zé Tristão era o pai da garotinha. A mãe, já o disse, ninguém sabia quem era. Tristão nunca fora visto com mulher nem bicho parecido. Era só. Vivia só. Só ele a olhar a lua. Jogava futebol, chamemos-lhe assim, ao jogo ruim de ver e de jogar, que Zé Tristão improvisava num campo de terra, para lá do sol posto. Ai como jogava mal! Diziam as más línguas, que tamanha falta de pontaria, era por falta de mulher. Zé Tristão rematava torto, tão torto, que não raras as vezes, a bola fugia a sete ventos e desaparecia em tempo algum. Quantas bolas se perderam nos riscos do horizonte… um dia Zé Tristão saiu de Covelinhos para ir apanhar uma bola e chegou abanando o seu desajeitado tronco, as suas pernas desproporcionais a desobedecerem a qualquer matemática do corpo humano. Zé Tristão chegava feliz. Numa mão trazia a bola, na outra uma pequena criaturinha rosada e linda. Tão linda! Nunca ninguém tinha visto criança tão bonita. E juro que não estou a exagerar! Tristão engalanou-se e apresentou a pequena como sendo sua filha. A menina foi crescendo na proporção da sua desmesurada beleza. Ninguém perguntava a Zé Tristão quem era a mãe. Ao ano e meio já a garota corria mais do que o pai. No dia em que fez dois aniversários, era domingo. Zé Tristão tinha jogo de futebol. Zé pegou nas chuteiras com uma mão e com a outra segurou a mão da garota. Chegados ao campo, pegou na catraia e sentou-a em cima da baliza, no exacto lugar onde o vértice superior esquerdo segura a malha. Do lado do coração. Todos acharam que Tristão estava louco. Que ia magoar a pequena. Mas Tristão pouco se importou dos apupos. A petiza também não. Sorria para o pai com o sorriso mais belo que a sua beleza conseguia tecer. O jogo começou no final da tarde, tal a discussão que se gerou em torno de tão impróprio lugar para sentar uma criança. Era quase noite. Zé correu para a bola com o seu corpo enorme e fora de ritmo. A pequena baloiçava os pezitos ao penduro na baliza. Zé Tristão sorriu para dentro. Abriu bem as narinas, engoliu todo o ar que conseguia e rematou. Rematou forte. Muito forte. Quem estava fechou os olhos. Um aiiiiii geral encheu o campo. Um pensamento unânime gelou os corações : “coitada da menina!”. Quando os Covelinhenses abriram os olhos, a medo, viram a bola anichada no cantinho da baliza. Era já noite. A brancura da bola e da malha contrastavam com o negro do ar. Varreram com os olhos os cantos do campo.
E ao longe, ainda conseguiram ver Zé Tristão e a menina a subir muito alto, pelo lado esquerdo do céu. Contaram-me depois, foram ter com a mãe da pequena, que lá do alto, esperava a sua metade para se transformar em Lua Cheia.

Friday, September 24, 2004

Meia Lua

Em pequeno, o sobrenome Meia ditou-lhe anos de tormento. Meia leca para os mais educados, Meia foda para os outros, quase todos, escusado será dizer. As piadas, tantas, estendiam-se ao último apelido. Ou porque andava sempre de cabeça na Lua, ou então, bem pior, tinha nascido de cú para a Lua. Uma imensidão de lugares comuns bem à medida tradicional de casos à margem da social normalidade.
Há apenas um momento de esquecer tudo. E começou naquele fim de tarde, ao balcão do café do pai e da mãe, com o leite nos lábios e pão com manteiga nos dentes. Fazia isso às terças e quintas, sempre, porque as aulas acabavam mais cedo. Ao balcão do café Meia Lua, propriedade de Maria Fio de Meia e Joaquim Joaquim Sol e Lua, os pais de João Maria Meia Lua.
A hora do lanche dele, naquele dia, à hora da cerveja do senhor Campos, treinador dos iniciados do Desportivo União, traçou um futuro mais do que perfeito.
Hoje relembra quase tudo desses dias. E se sorri no minuto mais importante da sua vida, enquanto milhares estão em pânico na bancada, milhões em casa, um dezena no campo e mais uma dezena no banco, se sorri neste momento, a explicação é demasiado simples.
Está a ver-se exactamente assim, há treze anos atrás, no pelado do Clube de Futebol de Serzedo, rival eterno do Desportivo União. O sorriso é por causa dos calções largos em pano, calções velhos dos seniores, presos na cinta pelo cordão de uma chuteira que tinha esgotado o prazo de vida. Chutou para ganhar.
Está hoje também no único sítio da área onde a linha faz curva. Os nomes ditos nas bocas dos outros são outros. No único sítio da área onde a linha faz curva, faz o que tem a fazer.
Demasiado simples para ele, João Maria Meia Lua. Já só responde por Meia Lua. Mas é o de sempre: apenas filho do Quim Quim e da Mimi.

Thursday, September 23, 2004

Tudo
(menina)

De futebol não percebo nada. Aliás, não percebo nada de quase nada. E no entanto gosto de quase tudo. Eu que sempre quis pouco, vou conseguindo a pouco e pouco o pouco que pedi. Tenho domingos à tarde e campos de terra batida com gente de sardas a rir e a correr aos circulos em busca da tal magia que só se consegue agarrar aos domingos à tarde quando se corre em campos de terra batida com o céu azul recortado entre duas balizas. E tenho conversas banais, tão banais que para mim passam a ter a importancia que lhes devo nestas teclas de computador. De futebol não percebo nada. Aliás, não percebo nada de quase nada. E no entanto gosto do céu azul recortado entre duas balizas.

Saturday, September 18, 2004

Morrer em campo - I

Não lhe vou dar nome, nem número, nem cor à camisola.
Prefiro ignorar se chovia ou se me cegava a luz dos holofotes.
Esqueci o resultado, limpei da memória o tempo que faltava para jogar. Mas jogámos, todos, o tempo que faltava para jogar, para que ele pudesse sair dali e declarado morto no hospital.
A bola ia e vinha sem sentido. Como o fim de uma vida.

Friday, September 17, 2004

Amor à camisola - manias de homem

Volto a ser um puto quando olho para ti. Pego-te sempre com a mesma ternura e quando toco em ti suspiro aquela tranqulidade só nossa.
Amo-te ao jeito de uma moda antiga.
Que importa se dizem que já não me serves, que engordei ou que encolheste.
É só contigo que ando às riscas. Serves-me à medida, na horizontal do verde e do branco. Somos sagrados quando o leão encosta ao coração.
Perdoo-te todos os defeitos e acho até gostar deles. Cravo as mãos em ti nos dias felizes e só te largo para dormir. Ficas deitada a meu lado.
Sonho um amor eterno. Por acaso é real. Obrigado por existires. És boa parte de mim.
Não se vê, mas por dentro sou gémeo de ti.

Vieram mil por nós os dois


Vieram uma vez por outra, em quase todas as semanas, mas não todos os dias.
Vieram por nós os dois. Um e outro vieram se calhar só uma vez.
Mas também eles vieram por nós os dois.
Viram os treinos, os ensaios tácticos, as entradas mais duras, de carrinho ou pé em riste. E os desarmes limpinhos.
Viram fintas, viram golos, bolas amortecidas no peito, chutos em arco e de bico. Os falhanços na cara do golo, as defesas impossíveis... os ais e os uis.
Os pontapés de saída, de baliza e até de bicicleta. Braços no ar, alegria e desalento. Lágrimas felizes, lágrimas tristes. E eu contigo ou tu comigo. Em casa e nos jogos fora, ao sol e à chuva. Em estádios cheios ou com bancadas desertas.
É lindo o futebol e as palavras que escrevemos com ele. Golo número mil.
De volta
( meninices)

Já passaram mais de cinco anos. Estou de volta. Estamos de volta. Domingo há jogo no mesmo campo, naquele campo, que foi pretexto de escrita de uma primeira escrita neste blog. Cinco anos. Mais? Mais. Muito mais. Daqui de onde eu estou vejo agora as linhas de campo desenhadas de outra forma. Não estou no pico da idade, ainda não, para lá caminho, mas o sol já não me cega, nem a noite me mete medo. Vou jogar. Eu e a Sandra e a Carla e a Inês e todas as outras que um dia fizeram parte da minha vida. Estamos outra vez juntas. Outras vez. Já não há o Rui nem o Carlos nem o Nuno. Há nós a rir e a correr pelo campo a desenhar linhas imaginárias que levam a bola em atrevidas danças até à baliza onde a apoteose do golo será uma espécie de final feliz com pontos de exclamação para nós, sim para nós, para mim e para a Sandra e para a Inês e para a Carla e para todas aquelas que aparecerem por aí e que queiram ser outra vez meninas a correr sob campos imaginários com balizas e golos e bolas e risos e suor e tudo o que me apetecer pensar e escrever e inventar porque nos golos da minha cabeça mando eu , só eu, e eu gosto muito de marcar golos de cabeça. Tenho dito. E disse. E escrevo. Muito.

Thursday, September 02, 2004

Restaurante Portugal
Ir ao mercado e voltar e mãos abanar. Ou de bolsos vazios. Ou os dois. Ou não.

Alberto não dorme, nem mesmo fora de serviço. Alberto está dois passos à frente, é o homem do leme, o caça talentos, o senhor intuição.
Cheira-lhe que peixe graúdo pode resolver o problema e sabe da importância vital de uns quantos jaquinzinhos. Do oito ao oitenta, dois ou três recém-nascidos podem ser levados para o viveiro, os de melhor "potencial" aparente. E aqui ninguém melhor do que Alberto para escolher.
Lembra, orgulhoso, há uns tempos atrás, aquele pequeno comprado no leve-três-pague-um, aquele vindo por excesso para possiblitar a vinda de outro. O que não era para vir, esse que foi embora há dois meses, para a mesa quatro, a peso de ouro. Fez-se peixe pelas mãos dele, peixe a sério.

O fundo para a aquisição dá para tudo. Peixe graúdo, para lucro imediato, ou escamas despercebidas, a médio prazo. Ou então os dois.

Alberto faz contas e contas, pé ante pé, marginal fora, depois cidade dentro. Vai. Volta.
Faz contas e contas. Se chega assim ao mercado, sem fórmula para decidir, há-de voltar a cometer o mesmos erros de há dois anos atrás.
Talvez seja melhor dormir sobre o assunto, regressar amanhã, passar a noite a reflectir os porquês de o chefe de cozinha, cargo que acumulava com o de mesa, ter escolhido emigrar.
Logo agora que o Restaurante Portugal voltou às páginas dos guias estrada, como o melhor da europa.
Amanhã, Alberto vai decidir mal. Pouco importa. Usa e deita fora. Até um dia.