Monday, March 29, 2004

Entra o dia, sai a noite
Substituições. Tudo o que for preciso para ganhar
Virar o jogo ao contrário

São quase horas de acordar. O jogo acaba hoje, de uma ou de outra forma.
Equipo-me a rigor, saco do armário o conjunto alternativo. Calças, Blazer. Em preto. As meias, os sapatos, o cinto e a camisa.
Salto para o chuveiro antes do início da partida. Demoro. Ensaio a táctica, espalho a espuma de barbear, concentro o olhar nos olhos do espelho. Em cada passagem, a gillette ouve-me uma frase. Foi a última palestra.

Os minutos passam, a hora aproxima-se, o ritmo aumenta. A camisa por dentro
por dentro das calças. Aperto de cinto determinado. Blazer de uma vez só. Sapatos: um, dois.

O estágio é longo, no carro, em andamento. Voltas em que volta tudo a passar diante. Está na hora. Não vou.
A perder, que seja por falta de comparência.
Imagino-te no estádio do nosso desafio, da nossa final. Equipamento habitual.
Calças descida, justa, camisa justa, decote. Sandália alta. Casaco fino sobre a mala, " mais vale o brio do que o frio".

Ainda esperas à hora em deveríamos estar nos penaltys. Vejo-te do outro lado da rua. Levantas-te, sais e acontece essa coisa dos pressentimentos. Levantas a cabeça para me ver. Olhos nos olhos ouvimos o apito final.
Só volto a casa de manhã.


Tuesday, March 23, 2004

Cinco bolas por 5 escudos de sete em sete dias
- estrelas em plástico, madeira e ferro -

Um menino pede, pede muito, para os anos virem depressa. Não pelos anos. Para crescer.
Nunca participa, de facto, na festa. É o público. Sentado de joelhos na cadeira atrás de uma das balizas.
"2 cafés, meia de leite, 1 pingo claro"
Em pé aparece o cabelo... e os olhos se em bicos de pé.
Escapa por milagre às bolas fora.
"sai 1 torrada, 1 galão e 1 pirolito"
Hoje só vieram três, um está doente. O puto vai jogar, na posição de público, de joelhos na cadeira, mas vai jogar.
Mão esquerda no meio campo de 5, direita no ataque de três.
Falta força no centro, sobra jeito na frente. O complemento suficiente à experiência da defesa.
5 bolas = a vitória ou derrota.
" 1 chá, 1 queque, 2 finos"
Já só faltam 7 dias para próxima vez.
" 7 chicletes"
Adeus até para a semana.



Joãozinho
(visão feminina da vida pouco direita de um extremo-esquerdo)




Era de todos o mais incompreendido.
Joãozinho. Na escola o menino gozado era bom a matemática e mau a português.
Joãozinho, extremo-esquerdo.
Olhos enormes, sorriso feio, feiinho… cabelo despenteado e pele cor de terra batida.
Joãozinho. Não havia conta que ele falhasse. «Dois passes vezes três livres, isso dá…seis remates»,
concluía Joãozinho com o tal sorriso. Tanto que sorria esse menino! E para o caso, sorrir nem sequer era uma vantagem.
Joãozinho extremo-esquerdo não tinha amores, porque as meninas fugiam dele a sete pés.
Não tinha amigos, porque os amores dos amigos fugiam dos amigos de Joãozinho mal o vissem sorrir. E como Joãozinho sorria!
Olhos grandes. Demasiado grandes. Dizia o professor de Geografia que a grandeza das crateras dos vulcões não era nada
comparada com as pupilas de Joãozinho. Indiferente a tudo, Joãozinho sorria. Extremo-esquerdo. Sempre.
Aos domingos depois da missa, Joãozinho corria corria corria pelo lado esquerdo de qualquer lado,
atrás de bolas imaginárias que sorriam para ele, com a boca escancarada em histórias de couro que só Joãozinho entendia.
Joãozinho ouvia e sorria. Indiferente a tudo.
Extremo-esquerdo.
Porque nunca lhe deu jeito ter o coração do lado direito.

Monday, March 22, 2004

Segunda-feira todo o dia

É do tempo dos calções em pano e das camisolas grossas em malha quente, de gola justa ao pescoço.
É do tempo das chuteiras pretas, e só dessa cor, do tempo de as amarrar de acordo
com a moda: simplesmente sobre o peito do pé em laço, em duas voltas pelo tornozelo enlaçadas
no tendão de aquiles, em duas voltas por baixo da sola e apertadas em nó curto no peito do pé.
É do tempo das meias simples, não elásticas, do tempo dos atilhos, os fios de apertar a meia
logo abaixo do joelho.
Recorda-se do inverno gelado e do sol quente da primavera aos domingos de manhã.
E da agitação após o jantar das noites de sábado. De deitar-se amarrado às chuteiras com os braços.
De não domir e de ver nelas os golos da próxima manhã.
Aos domingos ela vem sempre, quase da altura do pai.
É mais bonita na primavera e serena no inverno.
Ele é do tempo em que o árbitro só veste de preto. Mal escuta o último apito já está a sonhar outra vez.
Para ele já é segunda-feira. Ela está sentada na esplanada. Dizem olá.
Falam do mundo das camisolas quentes,
das chuteiras pretas e só dessa cor, dos calções de pano. Não falam do óbvio. Sentem e basta.

Friday, March 19, 2004

Entre a rua e a areia

Costumava ser ao fim da tarde. O sol aproximava-se das dunas, sorria para nós e continuava a descer,
quando já não o viamos, sobre o mar.
Costuma ser dia sim, dia não ou quando nos apetecesse.
Um livro sobre o volante, o teu corpo no meu colo. Cabeça adormecida no ombro.
Música no número 2 do volume.
Costumava ser perfeito.
As rodas encostavam na areia. As de trás não chegavam à rua.
O teu sono era meu.
O espaço está lá, diante das dunas. Esta lá e não está. É outro. Uma tira amarela para gente e bicicletas.
Passo sem pressa. No número 2 do volume. Fala de um jogo que acabou de acabar.
Em que todos ficaram a perder. O vencedor e o derrotado.





Sumário nº4: O futebol é o Pai de todos os desportos.O melhor do mundo. Pelo menos para os filhos.

Wednesday, March 17, 2004

Pretextos
(olhares femininos sobre um mar sem cor)




Falas-me sem pausas do que te atormenta.
O trabalho, sempre o trabalho.
O estômago, a cabeça, os rins, a falta de ar, os problemas de respiração que se agravam dia após dia.
Ouço-te neste início de tarde como em tantas e tantas outras.
«Sim, eu sei. Eu sei que deve ser difícil», respondo-te. «Claro que te dou atenção!», continuo.
Falas-me neste início de tarde de futilidades.
Dos carros, do trabalho, da filha da tua irmã que te riscou uma disquete ou um CD, ou coisa do género. Falas-me e eu não te ouço. Tens razão.
Falas e eu prendo-me no mar.
É bonito o mar, não é? Eu sempre achei que o mar não ter cor. Não é azul, nem verde, nem cinzento. É mar.
Gostava de ter um mar no meu quarto.
Falas-me e eu deambulo o olhar entre a água e o areal imenso que se estende aos meus pés.
«Sim, estou a ouvir-te. Diz!», continuo.
Um menino queimado pelos primeiros sóis brinca na areia. Um cão corre para a água.
Uma senhora gorda deita-se entre as rochas. Um casal de namorados passeia em conversas mudas.
Estico-me na cadeira, imagino-me pequenina outra vez, sou eu quem brinca nesta praia.
A areia húmida cola-se aos meus pés.
Escrevo com conchinhas os problemas que mais me afligem, numa espécie de síntese, e depois espero que a água os apague e volto feliz para o areal seco, com menos problemas. Fácil.
E deito-me ao sol a sentir a agua salgada secar na pele, a tirar-lhe a elasticidade.
Neste início de tarde, falas e eu não te ouço.
Apetece-me continuar nesta praia de menina e acreditar que o mar não tem cor e que as coisas más
desaparecem ao toque da água.
Estico-me mais uma vez na cadeira. Falas, falas, falas. Ao longe vejo uma imagem perfeita.
Duas balizas no areal, dois meninos. Um deles está bem ao centro da baliza.
Tem uns calções azuis. O cabelo castanho muito escuro.
Vejo-o no enquadramento da baliza, o mar em segundo plano, o céu escondido na neblina deste inicio de tarde
em que tu falas e eu não te ouço.
Parece-me feliz este menino que espera a bola neste quadro perfeito em que está pintado.
Lembro-me: o futebol é um belo pretexto para escrever. E escrevo.

Thursday, March 11, 2004

O maior guarda-redes do mundo
(meninices)





Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá.
Assim era o seu nome.
Há quem afiance que Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá era o homem mais alto do mundo.
O maior entre os maiores. O homem mágico que não cabia na baliza.
Mas Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá nem sempre teve uma vida feliz. Não teve não senhor.
Eu sei-o e posso falar, porque conheci-o numa tarde de chuva, tarde cinzenta de um mês de Agosto.
Daqueles dias estranhos que parece que não cabem nos calendários. Mas vamos ao que interessa.
Ou seja, a Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá, o homem mais alto do mundo.
Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá era guarda-redes da equipa dos Asas Negras numa África que eu só conheci das histórias de colo do meu avô.
Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá, tinha corpo de homem mas era miúdo e sonhava jogar à bola.
Grande, grande, todos o mandavam para a baliza.
Ora Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá apenas sonhava em aninhar o pé num branco e preto de bola e chutar,
chutar muito forte para dentro da baliza.
Mas, raios de vida!, era ele quem a defendia!
« Manel, tu vai jogá?»
«Pois sim, Don`Ana, Lá vamos nós!» E quando dizia «Lá vamos nós!», era mesmo isso que queria dizer.
Porque quando Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá se lançava em voos para agarrar bolas, levava consigo uma migração de pássaros.
Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá foi crescendo, crescendo, crescendo. E cada vez mais a baliza lhe parecia mais pequena, mais pequena, mais pequena. Nesta desproporção de tamanhos, Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá ficava sempre a ganhar e não havia bola que entrasse no seu território. Ganhava a equipa dos Asas Negras, os adeptos vibravam, Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá sofria baixinho.
Um dia, Dona Ana perguntou. «Manel, tu vai jogá?». E ele respondeu: «Hoje sim, Don `Ana, hoje vou memo jogá!»
O campo estava cheio, cheirava a açafrão. Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá ajeitou-se na baliza.
Os mãos por cima da trave, os pés quase no meio-campo.
Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá,o homem mais alto do mundo.
Uma bola vinha direitinho aos seus olhos. Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá esticou um dedo.
A bola tocou-lhe, fez-lhe festas, deu meia volta e voou para o outro lado do campo.
Golo. Foi golo.
Com a mão.

Tuesday, March 09, 2004

Lição nº 3
Sumário:
O futebol permite-nos fazer 30 por uma linha

Monday, March 08, 2004

Man of the match
(impressões dedicadamente femininas sobre o tal ultimo dia de um tal resto de vida de um número)



Ora aí está ele. Pé na relva, sorriso sincero, olhar distante.
Foi a mãe que lhe bordou o número que traz na camisola. Um número que obedece à magia do tempo
e vai mudando sem que lhe seja necessário dar mais pontos ou linha.
Amparado às vezes, outras não. Cai, porque qualquer jogador pode cair, levanta-se, porque os bons jogadores
levantam-se rápido.
É assim esse jogador de quem escrevo.
Escrevo apenas umas linhas que nem sequer obedecem a uma regra cientifica nem muito nem pouco certa.
É dia de jogo. Derby. Coisa em grande. Ele contra ele.
Número de camisola contra numero que se advinha. Está quase.
Nos minutos derradeiros de entrar em campo faz o que sempre fez. Supersticioso.
Chama o olhar, encaixa-o nos olhos escuros, debruça-se sobre o QWERT e inventa letras
que se encaixam na perfeição no número que carrega nas costas.
O estádio está cheio. Batem-se palmas, grita-se-lhe o nome. Chovem pipocas.
As pernas tremem-lhe de mansinho, (ele justifica no dia a seguir para os jornais,
jura que foi por causa das chuteiras que lhe ficavam apertadas).
Mexe um pé. Mexe outro pé. Direito, esquerdo, direito, esquerdo.
Ensaia um sorriso, é dia de derby.
Um frio corre-lhe onde às vezes o sangue quase chega a fervilhar.
Entrega-se sem pudor ao jogo. É dia de derby. O olhar já está outra vez lá longe.
É dia de jogo. É dia de derby. É sábado , não é domingo à tarde.

Sunday, March 07, 2004

O fim do jogo
(Uma história cor-de-rosa choque)


Há uma história inacabada cada vez que o cronómetro marca o minuto noventa, o arbitro apita,
levanta os braços e indica o caminho para os balneários.
Adelaide sabe-o bem. Viu com a barriga inchada de esperança muitas vezes a mesma imagem, o mesmo gesto,
o mesmo sentido.
Noventa minutos, noventa anos, noventa vidas que se lhe alojaram no ventre em forma de reticências.
Adelaide já não ri. Já não chora.
Conheci a Adelaide como ninguém. Sou uma das três reticências que a vida lhe deu.
Lembro-me dela de cabelo cumprido e sorriso maroto. Cheiro a sabão rosa. Os olhos verdes.
Morava numa casa baixinha, de um quarto, cozinha e sala, casa de banho e jardim.
Fumava às escondidas e lia revistas de moda.
Amou dois homens.
Tinha sempre uma braçada de flores em cima da mesa.
Gritava-me aos ouVidos na voz melodiosa que me esfrangalha de saudades: "Vive!vive!vive!"
Adelaide foi como minguém o minuto noventa.
Viveu para que esse pedaço de tempo não tivesse apenas 60 segundos.
Formou sindicatos, criou associações. Queimou bandeiras. Fez abaixo-assinados.

Morreu ao minuto oitenta e nove de uma tarde de Fevereiro.

Saturday, March 06, 2004

O fim jogo

os trocos que restam no bolso,
os últimos cartuchos, mais lenha para a fogueira



Em frente ao teclado, volta às angústias de todos os dias. É um playboy de meia idade.
Só atenta ao que perde. E se olha para trás de novo, volta a ter na frente dos olhos, desmembradas, as derrotas,
até lá muito ao fundo, sim muito para lá do sítio onde os olhos, dentro das lentes, apertados, pequeninos, deixam de ver.
A página, a mesma de todos os dias, imaculada, branca, desesperada de letras. Escuta-lhe as lamúrias, as invejas, os azares.
Diz ele: a vida toda foi um azar.
E imaculada, escuta. Quando queria ser esponja, sugar a tinta das letras, aceitar-lhe as formas. Fazer palavras.
E branca sabe de trás para a frente, tudo o ele que quer escrever, mas não sabe.
Tudo o que lhe vai lá dentro, no peito, na cabeça. Ela, deseperada de letras já sabe a desordem que o deixa em frente. Sentado.
Os amores, já os sabe como dela, as rejeições... e o azaaar. Prolongado e baixinho. O azaaaar.
A palavra maldita de um homem que tinha tudo e não soube ter.
E miserável, a bolachas e whisky, percebeu nada de ter de palpável em todos os anos. Miserável, de cigarros e pão,
decidiu deixar uma marca no mundo com um livro "A vida é um jogo, apenas um jogo, nada mais do que um jogo".
Esteve bem até ´90. Por aí, pelo meio deu de caras com a derrota, e foi dando sempre até hoje.
A primeira vez, faltavam cinco minutos para o fim.
Não era rapaz para aguentar grandes confusões,
levantou-se, recolheu jornal, já se estava a queixar de todos os degraus que tinha para subir: "só me faltava esta". Premonitório. GOLO!
Não dos dele.
"Que se lixe, o empate também dá", sempre em frente, sem voltar.
" Deixa sair depressa antes da confusão. Amanhã levanto-me cedo e vou comprar bilhete para a final em Atenas".
Já suado, mas finalmente lá em cima, na porta de saída: " UFF, estava a ver que não".
GOLO! Dos outros, outra vez. Atenas é para eles.
O último homem a sair do estádio, um playboy de meia idade, tem mais duas para contar. Só não sabe, por escrito.
Foi durante a vida, rapaz para todas a mulheres. Hora e sítio, à vontade. Muitas ao mesmo tempo, umas sem saberem das outras.
Um dia fartou-se, quis contar à namorada, falar-lhe que era o fim, de hoje em diante só para ela, calçado na honestidade de um momento.
Chegou tarde e dela apenas viu um bilhete, curto e com tudo." Até sempre Nunca mais". Premonitório.
Só com ele próprio desde então; e as conversas dentro de álcool.
Por fim: a sala de jogo a caminho de casa, mais visível todos o dias até ao que entrou e não mais saíu. Foi tudo.
Até o nada que tem vai jogando. Perdeu tudo. Azaaar.
Uma coisa ganhou e essa nunca há-de perder. O vício.
Pensava, mas não. No ecrã por cima da máquina de poker, o clube está ganhar, o outro empata. 90 minutos, prolongamento.
Ele já não vê. Acabou sentado. Uma ficha de 50 escudos na mão. Nunca há-de saber o resultado. Ninguém há-de nunca saber dele.
"A vida é um jogo, apenas um jogo, nada mais do que um jogo" . Deixou um título para um livro.

Friday, March 05, 2004

Sumário 2: O futebol é um belo jogo de equipa e um excelente pretexto para um encontro com as palavras.

Thursday, March 04, 2004

Estranha forma de prolongamento...
(minutos femininos)






José era velho. Muito velho.
De facto, era tão velho tão velho que ninguém se lembrava de o ter visto ficar velho.
Respeitável senhor, respeitável velho, reunia um misto de medo e mistério.
O velho mais velho do mundo, o velho sem rugas que era mais velho de que qualquer velho enrugado.
José gostava de rir.
Ria por tudo e por nada e ninguém sabia o que fazia um velho tão velho soltar
tantas gargalhadas a torto e a direito.
Ninguém lhe perguntava, porque nestas coisas da velhice,
todos sabem de certeza certa, que a idade é um posto,e José,
o velho mais velho que algum mundo tinha visto, era sem duvida o mais velho dos velhos.
Por isso, respeitinho com o velho.
José acordava todos os dias a sorrir.
De tarde já estava a rir e à noite rebolava de gargalhadas.
José gostava de contar passarinhos, horas e horas a fio,
sentado na cadeira de baloiço quase tão velha como ele.
( Mas nem nada nem ninguém era tão velho como o velho.)
José cheirava a alecrim e tinha a pele castanha como a terra em dias de chuva.
Os dentes eram brancos de uma brancura de nuvens e os cabelos ainda mais macios que a neve.
José era mesmo muito velho.
Tinha umas mãos enormes com que abraçava cestos e cestos de coisas nenhumas.
As mãos mais velhas do mundo que pertenciam ao velho mais velho que algum velho tinha visto.
Por ele já tinham passado milhares de velhos e todos partiam para a morte, mas José ficava.
Sem que nunca alguém lhe perguntasse porquê.
Até certo dia em que o sol queimava mais do que o habitual, José sentou-se na cadeira de baloiço, contou mais de cem pássaros e disse : “Acabou!”
O velho mais velho do mundo fechou os olhos e morreu.
Acabava o jogo.
Alguém procurou na casa do velho documentos da sua idade.
Escrito a um canto estava:
“José Taraves Leon, nascido entre os nascidos, criado sem ser criado. Duzentos anos de vida e dois mil de prolongamento”.

Tuesday, March 02, 2004

História inacabada
de um jogo perdido
numa tarde quente
de um verão passado a dois passos de distância de um balde de água. (coisas de meninas)




Hoje acordei com uma lágrima teimosa.
Baloiçava-me nos olhos numa dança infernal do ruído de ontem à noite.
Pensei: “ Se fecho os olhos choro!”. E não fechei.
Segui o ritmo do baile miudinho em que inevitavelmente se transformam todas as danças de lágrimas.
Deixei ir o corpo.
Veio-me à lembrança uma tarde quente de um Julho distante.
Um campo de terra batida, um cheiro intenso a Maias.
Os meus pais sentados ao sol, eu a sorrir. A sorrir muito.
“Agora entras tu e marcas!”, ouvi.
Entrei. Corri, corri, corri.
Levei um murro junto ao pescoço, fiquei com a voz rouca durante três semanas. Não marquei.
Perdemos o torneio mas tiramos muitas fotografias e demos muitos abraços.
E eu não chorei.

Monday, March 01, 2004

10 em dez anos

Hoje talvez não regresse ao Porto.
A estas pedras encaro-as como gente, neste raio de conversa...ora muda, ora surda.
Palavras que lhes troco com os ohos, palavras que não falo, mas digo.
Apetecia-me dormir contigo, conjugo assim, no passado, uma vontade do agora.
Se bem reparo, não é novo este pisar de com quem falo.
No chão, a caminho de ti, sou perfeito. E pudesse o chão seres tu, ouvirias, tudo ao certo.
Na realidade, e frente a frentre, entala-me esta ideia das palavras terem ouvidos.
Calo-me ao proximar de ti.
Assim, discurso à fidel, pé esquerdo, pé direito, sabendo que lá por baixo já está asfalto... é a cor do chão a 10 minutos de tua casa.
Lisboa 1994. Estava sol, era dia. Duas únicas diferenças. Esta noite volto a não ir a ti.
Seja medo, insegurança. Duas vezes, em dez anos.
É como se fosse dia de Derby em estádio cheio.
A meio campo, dominei no peito... depois o erro vai falar por mim....escreve-se com a cabeça fixada no chão. Passar todos e mais um. Fui cego por lá baixo, surdo aos avisos.
Contra tudo e contra todos, fui sózinho, passei todos e mais um.
Com ela à mercê atrapalhei-me, foi para fora, e mais 10 perderam por mim.
Vi-os sem ter olhado em volta porque os lí no número da perna esquerda dos calções.
Um pouco acima desta mão já segura por ti há dez anos; no momento em que fui para fora, cego por lá abaixo, surdo aos avisos...mudo.
Imaginando-te de branco... certa de mim.
Ainda não é hoje que decido o jogo. Antes, hei-de chegar ao Porto.
Já não falamos há 10 anos. O mundo seguiu em frente, foi de Maradona até Zidane.
Fechou um ciclo. Estou com ele.