Thursday, December 16, 2004

Um rapaz perdido pela India
(titulo sugerido por um GPS)
(ela)

E no entanto, nunca a tinha deixado. Corria-a em tardes quentes quando o pó subia ao céu azul que ficava ali, entre o chão e ela. As mãos desmedidas, como o são sempre nestas ocasiões, contavam histórias que ele tinha ouvido dos velhos. E ela ria. Fingia que acreditava que as histórias existiam e contava pássaros às gargalhadas de migrações. Os laranjas misturavam-se com os rosas e os azuis e os roxos e os amarelos em encontros prometidos de tardes quentes. Às vezes, a água não se aguentava e em soluços caía do céu. Nessas alturas ele costumava dizer-lhe que ia ser sempre assim: entre dois polos.O fogo e a água. Ela ria. Fingia que acreditava. E depois havia outra vez sol e risos e mãos e histórias. O céu azul, feliz, como devem ser todos os céus azuis, ensinava-lhe o caminho para sul. E ele seguia. Os pernas em forma de arco uniam os mundos que ficavam ali tão longe. Ele espreitava e sentia-a sorrir. Isso bastava-lhe. Perdeu-se. Por ela.

Tuesday, December 07, 2004

Eu, número sete
(ela)



Tenho o número bordado nas costas como se de uma tatuagem se tratasse. Sete. Escrito. 7. Dito. Sete. Tantas vezes sete quantas as vezes que me encaixo em mim. Guardo um sete nas mãos timidamente fechadas e guardadas nos bolsos nas tardes frias em que desço a avenida rumo a nada. Chove e tenho a humidade presa nos cabelos desalinhados, nas maças do rosto coradas de frio. Corro pelo ladrilho que me escorrega por baixo dos pés. Sinto a tua presença cada vez mais perto e isso dá-me alento para continuar a desviar a chuva do caminho. Sorris-me. Há um relâmpago enorme que rompe a noite. Abres-me os braços em arco. Olho-te, coro baixinho e entrelaço os dedos em forma de sete. Tenho vontade de ficar assim para o resto do tempo, embrulhada no silêncio que me ensinaste a falar. Olho outra vez e já lá não estás. Chove e eu tenho as mãos guardadas nos bolsos nesse abraço impossível que afinal ficou preso em nós. A minha mãe chora, o meu pai reconhece-me ao longe. Aperto os dedos, conto até sete. Será assim para sempre. Com um lápis desenho sete partidas. Um abraço com sete braços. Em sete notas de música tocadas ao acaso, bailo sozinha. Miro-me ao espelho. Ajeito o cabelo, a saia, a camisola curtinha. Hoje, sete, riu-me e choro com a facilidade com que escrevo. Sete vezes me confesso e sete vezes arranco o número sete das costas. Pego na linha das minhas mãos e bordo o número sete no peito, do lado esquerdo, que é aí que os setes da vida devem ficar guardados, mesmo aqueles setes que a gente não arranja forma de os tirar dos bolsos. Chove e eu estou aqui. Dia sete. Parabéns menininha.

Tuesday, November 09, 2004

vou arranjar os pés

vou, vou, pôr-me bonita. Vou arranjar os pés, fazer as unhas, pintar os lábios e cortar o cabelo. Mas antes vou às compras. E nem almoço. Faço tudo de enfiada, ai faço, faço. Faço, e ai dele, logo à noite se não olha para mim.

Já não me lembrava de me ver num vestido. Nem de me ver assim mulher.

Com a cabeça no vestido preto, começo pelo cabelo e as unhas na mãe da Zulmira. A prima lima a conversa com os dedos na mão; a mãe corta o discurso e penteia para outro lado. Pronto já está.

Só falta arranjar os pés. Vou um ante o outro, passo curto, apressado, a casa da Júlia. Atende-me num quarto de hora e já está fico pronta.

Chego a casa, o Henrique não dá por mim, ainda bem, não dá por mim e assim vou ao quarto. Ponho o vestido e preto e deixo-me à frente dele. Estás doente, pareces com má cara, diz-me sem reparar. Não, não, estou cansada, fui à Júlia arranjar os pés.
Deixo-o a falar sozinho.

"Olha, diz à Júlia se amanhã tem tempo para receber os jogadores do sporting"...

e disse mais qualquer coisa

Monday, November 08, 2004


Um homem mete a mão na consciencia.
E tira-a. É pequena e cinzenta. Redonda, jeito de bola. Cheira a queijo suiço. O Homem estremece. Pega-lhe devagar. A mão abre-se e fecha-se, a consciência aumenta e diminui de volume, tipo bola anti-stress. O Homem adapta-lhe as falanges, as falanginhas e as falangetas. A consciência cheira cada vez mais a queijo suiço. Esquece-se o Homem de a pôr ao fresco, apanhar ar. Um rato aproxima-se. Fareja-a. Não a come. Vomita-lhe o cheiro. O Homem fecha a mão outra vez. Guarda-a. Fora da alma a consciência oxida-se. O rato dá meia volta, mete-se na toca. Ali não cabe a consciência. Está salvo o rato. A mão do Homem dá voltas pelo ar. A mão de Deus enfia a consciência colectiva numa baliza branca. O estádio está cheio. O Homem esvazia-se. A noite cai devagar e a mão direita ampara-lhe a queda. A mão esquerda brinca ao lado do coração com a bola cinzenta. O Homem adormece numa migração de consciências e sonha com o rato. O rato aproveita o escuro e sai da toca. Tem fome. Gosta de queijo. Tem mesmo muita fome. E a bola cinzenta está ali, perto, na mão do Homem, cheira mal mas é um alimento, e o rato tem fome. O rato come. Come a falange, a falanginha e a falangeta. E a bola cinzenta solta-se em correrias loucas para dentro da toca do rato.



Clássico
(ela)


Duas horas menos dois minutos. Passo o guardanapo pela boca. Duas horas menos um minuto. Levanto o dedo. Duas horas. « A conta, por favor!». Sem favor trazem-me a conta. Pago. Duas e cinco. Já estou do outro lado da porta. Duas e dez. Chega o nº44:Baixa. Metro. Duas e vinte e dois. Metro outra vez. Rua do Passeio Triste. Duas horas e trinta. Chego. Encosto-me na cadeira. Ajeito a gravata. Passo a mão pela testa, pela cabeça, pelo cabelo. Um registo, dois registos, três registos. Uma certidão de óbito, duas certidões. Três de casamento, quatro de divórcio. Quatro e meia. Um cigarro. Quatro e trinta e dois. Acabou o cigarro. Sento-me outra vez. Quase cinco. Quase quase cinco. Cinco. Cinco horas. A rua está cheia. Eu esvazio-me aos poucos a caminho de casa. A casa. A minha casa. Cheira a molhado. Não chove, mas já choveu e eu tenho por hábito guardar sempre a chuva dentro de minha casa. Seis horas. Faço o jantar? Faço. Sopa. Bhammm... Oito. Sento-me no sofá. Ajeito os chinelos. Xadrez. São de xadrez os meus chilenos. Oito e pouco. Oito e pouco. Oito e pouco. Oito e meia menos pouco. Oito e meia menos pouco. Oito e meia. Uf. Marca? Marca? Ganho? Ganho? Vai? Vai? Dez menos pouco. Dez menos pouco. Dez menos um quarto. Desligo a televisão. Dez horas. Desligo a luz. Dez e dez. penso. Dez e vinte. Penso. Dez e meia. Viro-me. Onze horas. Penso. Outra vez. Onze e vinte. Uff.Onze e meia. Ai.Onze e quarenta. Penso outra vez. Onze e quarenta e cinco. Só já tenho mais quinze minutos para pensar. Penso. Meia-noite menos dois. Meia-noite menos um. Meia-noite. Até amanhã.

Thursday, October 28, 2004

O segredo da felicidade conjugal
(ela)


Sem escrever não vivo, dizia-lhe ela embrulhada em papel reciclado. Sem escrever não vivo mesmo, Eduardo, não vivo e tu bem sabes disso, por isso deixa-me escrever, Eduardo, deixa-me escrever, porque sem escrever não vivo. E assim o meu avô ofereceu-lhe uma máquina de escrever. A minha avó ficou feliz e a viver muito e a escrever ainda mais. E o meu avô ficou com mais tempo para jogar à bola.
Entre Chopin e um árbitro
(ela)
Da minha avó materna herdei algumas coisas, entre elas a arte de chorar. De maneira que quando no domingo passado vi o Pedro a correr entre os miúdos que jogavam à bola no Jardim da Carreira, em Vila Real, não resisti e abri a já por si pouco fechada bolsinha da imaginação do meu saco lacrimal.
O Pedro corria e achava-se uma espécie de arbitro. Espécie, não. Ele era mesmo um árbitro e corria atrás dos putos com um assobio na boca em insistentes assobiadelas. Os miúdos, diversos Nunos Gomes e Decos, olhavam para o Pedro, imagino que com a cabeça cheia de perguntas: quem é esta criança grande? Porque se ri tanto? E de quê? O Pedro tem a minha idade e sofre de trissomia 21. Conheci-o quando tinha eu apenas seis anos. Ele frequentava a casa da minha professora de piano e durante anos frequentou também a paciência de todos nós, alunos da Laidinha. Não foram raras as vezes em que o Pedro entrou de rompante pela nossa pauta, de braço dado com Chopin, os dois em loucas genialidades, trocando os pés a cada avanço de claves de sol, deixando-nos invejosos por essa inusitada intimidade. Que eu saiba, nem mesmo o Nuno e o Paulo, agora os dois senhores professores de conservatório na capital do país, nem um nem outro tiveram honras de andar de braço dado com Chopin, em passeios pelos pianos da Laidinha. Mas não julgo que a minha carreira e a de outros como eu, tenha ficado no primeiro apeadeiro, por causa da desconcentração que o Pedro causava sempre que chegava ao pé de nós com os seus grandes olhos e o sorriso muito rasgado. O certo é que hoje, vinte e um anos depois de ter conhecido o Pedro, volto a encontra-lo, num jardim da cidade, com um apito e um papel dobrado a fazer de cartão vermelho. Corre, desequilibrado, ri muito, tornando os seus enormes olhos ainda maiores. Mostra o cartão, apita, mostra o cartão, apita, mostra o cartão, apita. E ri. Ri muito. Os Nunos Gomes e os Decos fazem-lhe fintas ( como eu o fintava ) olham para ele (como eu o olhava) e não lhe perguntam quem és tu (como eu não perguntava) e vão crescer a pensar quem é ele ( como eu cresci). E um dia, talvez daqui a vinte e um anos, venham ao jardim de Vila Real numa tarde de domingo com um livro na mão, se sentem num banco de pedra com Chopin por perto, desdobrem um cartão vermelho e façam dele um avião.
Minuto final
(menina)
Quando o relógio se aproxima do minuto final sinto que já algumas pessoas abandonaram o estádio. Já sabem qual vai ser o resultado. Caminham em conversas para os carros. É nessa altura que desacelero o ritmo e olho para as nuvens para ver se chove. Raramente cai pinga de água. Os jornalistas atropelam-se nesse minuto final à boca do túnel. Se chove é porque já estava a chover. Olho para o árbitro e ele não olha para mim. Ele olha para o cronómetro que por sua vez olha para o tempo. E o tempo não quer nada comigo. Se a chuva é forte, provavelmente é porque começou a cair ainda no primeiro tempo da partida. Minuto antes de tocar o despertador abraço-te devagarinho para não te acordar. Raramente acordas. Estico uma perna e outra e olho para o tecto. Descubro uma infiltração. Se estas acordada é porque já estavas acordada. Penso em ti no minuto antes de o despertador tocar. Tenho vontade de te dizer bom dia e que gosto de ti e tal e tal mas tu não olhas para mim. E se olhas é porque já estavas a olhar. O árbitro inicia o movimento de levar o assobio à boca. Mais um pé sai da porta do estádio. Outro adepto move um dedo. Procura um cigarro. O árbitro enche os pulmões de ar. Depois do jogo vou para casa. Hás-de estar à minha espera. Um jornalista tropeça noutro. Uma nuvem deixa cair um bocadinho de algodão doce. Não chove, mas eu também já sabia de antemão, que nunca começa a chover um minuto antes de o jogo acabar.

Monday, October 25, 2004

Fora de jogo

Um dia, alguém decidiu ver João Homem, camisa 8, para lá do limilte legal. Alguém com poder de facto para o fazer. João Homem chama-lhe alguém para não ter de lhe recordar o nome. Só.
Protestou, insultou, disse não cem vezes. Reagiu a quente, ficou um homem frio depois.
Quando decidiu parar para pensar, quando decidiu passar a repetição, nem foi preciso movimento lento. João Homem estava para lá do bom senso, muito distante da honestidade, a jogar em vários campos em simultâneo. E no entanto protestou, insultou, disse não cem vezes.

Sem saber muito como, este Homem viu-se num instante a sombra de tantos homens. Com os vícios de não trazer por casa. Os 40 euros por cada vez no motel, as facturas de deitar fora pelo vidro do carro a quinhentos metros do quarto. E aquele cheiro a que cheiram as outras, aquele que fica colado na pele e preso na roupa. Aquele que incendeia e cega, esse, aquele que se deseja desesperado e que desesperadamente se reza para ir embora.
Ele é Homem para ficar quieto e fingir estar vivo. É Homem para se achar gente apenas por causa da aquele 8 que trás nas costas aos domingos á tarde. Esse 8 que lhe está a moldar a vida, a fazer-lhe a forma de duas curvas em nó. Um caminho sem saída, mas não para ele. O 8 está-lhe preso nas costas e ele já está velho de mais para ver número que anda a fazer.
É Homem para continuar a protestar ou a insultar. Homem para continuar dizer não cem vezes.



Friday, October 15, 2004

Momento
(por ela)



Ao Francisco que se vai dando a conhecer entre letras


Há um momento preciso no preciso momento em que a bola quase toca o pé. Um momento onde o tempo nasce e se iguala à leveza do ar e onde os segundos ficam pendurados à espera de um sopro de nós. Um segundo incontável onde se desenham linhas e angulos quase rectos numa espera inadiável de finais. E de caixas cor-de-rosa saltam duendes de camisolas verdes que saltitam entre pés do pé direito para o esquerdo de homens curvados perante esse tal inadiável encontro. O céu azul, feliz como deve ser o azul celeste, baixa-se em pano de fundo sob o risinho escancarado dos pequenos duendes que com lápis de cor nenhuma desenham mais angulos e mais algarismos numa matemática de contos de fadas. E num enorme balanço de joelhos, quase, quase, quase tocam a bola...mas não. Um duende mais pequeno com medo do frio olha para o branco da baliza enorme que se ri à nossa frente e volta para casa de mochila às costas para o regaço da mãe que o espera com o leite quentinho numa tijela de barro. E eu ali fico agarrado ao segundo que teima em não cair daquele pedaço azul que baila sob mim. O meu pé direito cheio de cocegas, num vai que não vem, num remata que não remata, à espera que eu lhe dê a ordem de capitão, que lhe indique o caminho para esse tal encontro, porque afinal há sempre um segundo por cair em cada um de nós e um segundo é apenas um segundo, tal como uma baliza é apenas uma baliza, um medo apenas um medo, um duende de camisola verde apenas um duende de camisola verde, tal como os poemas são apenas poemas e a vida é apenas isso: vida.

Wednesday, October 13, 2004

A importância de se ser David
(menina)

David número 10 corre para a baliza. David olha para a bola. Gritam por David número 10 nas bancadas. David não ouve nada. Minto. David ouve. David ouve o bater do coração. Pum.Pum.Pum.Pum.Pum.Pum.Pum.Pum.Pum.Pum. Dez vezes. David número 10 é um herói do campo verde onde se move em correrias loucas de Davides contra nada. Minto. David está sempre contra a corrente. A favor do vento. A favor do vento, que é assim que se corre melhor e David número 10 gosta de correr e por isso corre sempre a favor do vento contra as coisas das quais é contra e é contra tanta coisa. Gritam por David nas bancadas. David acerta o corpo. David estica o pé. Sorri. Sorri sempre o David. E David número 10 chuta. Chuta muito e muito alto e a bola ri e ri muito e muito e o publico nas bancadas ri também e a baliza escancara-se numa gargalhada e a bola entra numa curiosidade de médicos a tentar desvendar os mistérios da laringe. E David número 10 sorri dez sorrisos seguidos erguidos aos céus onde o eco se mistura com o doce das nuvens e se ouve David.
Bilhetes
(escrito por ela)


Podes voltar logo à noite e fazer aquelas batatas assadas que gostavas de fazer que desta vez não me vou importar com a minha azia, a afinal, que se lixe a azia, para que servem os médicos? para que servem os médicos perguntavas-me tu e eu respondia-te que os médicos servem para dar remédios e eu não gosto de tomar remédios mas eu posso aprender a gostar porque a gente habitua-se aos gostos. E eu prometo que não me volto a queixar e não volto a falar da porra da azia e por isso podes voltar e fazer as batatas que eu esqueço aquele papel que me deixaste pendurado no frigorifico. E logo no frigorifico, porquê o frigorifico?, aquele que foi tão caro e que tu namoravas na loja dos electrodomésticos ao fim de semana quando passeávamos no centro comercial e tu querias comprar um ferro de passar com vapor, que eu achava desnecessário, afinal Matilde não temos já um ferro de passar? mas agora concordo, o ferro é bom para engomar as minhas calças de domingo. E afinal querias só o ferro, queriamos apenas um ferro e acabámos por comprar um frigorifico, bonito é certo, mas é apenas um frigorifico, é preciso ir outra vez à loja Matilde? outra vez Matilde? é lindo, é certo, é de inox. E agora a porra do inox fica tão mal como cenário de fundo para o papel que me deixaste pendurado com dois anjinhos. No frigorifico Matilde? No frigorifico Matilde? Agora que já passaram tantos dias e que o raio da assadeira continua dentro do fogão, agora Matilde, agora que já passaram tantos dias que até já há quem diga que te viu com o rapaz da loja de electrodomésticos onde nós passeavamos ao fim de semana ( imagina só, tu e o rapaz do frigorifico, linguareiras as vizinhas, não ligues Matilde), agora que me lembro da tua insistência em saber todos os domingos o preço do frigorifico e do ferro e do secador de cabelo e do secador de roupa e do e do e do, agora que me lembro disso tudo e que tenho a certeza que apenas estavas interessada nos preços porque estavas preocupada, muito preocupada com as contas de casa, agora que sei disso tudo, agora vou telefonar para o camião das mudanças, vou fazer caridade, oferecer o frigorifico à Casa das Florinhas, dar um sermão às vizinhas que dizem que te viram aos beijos com o senhor dos electrodomésticos (imagina só, não lhes ligues Matilde), agora vou pegar no bilhete que me deixaste entre dois anjinhos, fazer um avião, apanhar a primeira migração de pássaros e voar. E este domingo não vou querer comer batatas assadas, porque me fazem uma azia do caraças e eu detesto médicos detesto remédios detesto batatas, por isso este domingo vou-me rir do teu bilhete e vou comprar um bilhete a sério, lindo e lustroso, e vou ver o meu Benfica.

Friday, October 01, 2004

Quando era pequena gostava de brincar aos elásticos. Agora gosto de brincar às letras. Não será parecido?
Peruísses muito sérias!

(coisa de galinha)



(o que se segue é o excerto da resposta a um jornalista dado por um jogador de futebol de 24, após um jogo entre as Galinhas de Cima contra os Perús de Baixo, numa noite de Natal, em que as Galinhas de Cima derrotaram por meio golo os Perús de Baixo sob uma chuva de estrelas no qual se destacou o maravilhoso Perú da Capoeira, aqui dando bicadas a torto e a direito, e que consta mudou de sexo para conseguir infiltrar-se na capoeira das Galinhas de Cima, na hora do banho.)




Louco. Sou louco. Sou louco. Sou louco. Sou louco. Sou louco. Sou louco. Sou louco. Sou louco. Sou louco porque sim. Sou louco porque sim. Sou louco porque sim. Sou louco porque sim. Sou louco porque me apetece. Sou louco porque me apetece. Sou louco porque me apetece. Sou louco porque gosto. Sou louco porque gosto. Sou louco porque gosto de ser assim. Louco de ti, louco de mim. Sou louco porque sim. E porque o sim é sim e o não é não, sou louco porque sim e porque não. Sou louco de pai e mãe, sou louco porque sou louco. E a loucura é assim, nasce e não morre, porque louco de início louco até ao fim. Sou louco porque sim. E depois? O que tens tu com isso, se a loucura é minha e se o riso e o choro me pertencem? Sou louco porque sou louco e a loucura não se justifica, sou louco do inicio ao fim, e porque sim é argumento, para quem gosta e para quem não gosta de mim, aqui vai, directamente de mim, sou louco porque sim!


(Ao que consta o Perú da Capoeira agora assina tudo o que há para assinar como Perua sem Beira)
Uma sala acolhedora com vista para nós
( senhora)


Foi por causa dela que me tornei no que sou. O maior entre os maiores, o mais respeitável entre os mais respeitáveis do admirável publico. Foi por causa dela que me tornei num galã, sem capa nem espada, num galã de mim, de fala e de ouvido, capaz de transformar um coração de pedra, numa acolhedora sala com lareira. Foi por causa dela, digo-o, em alto e bom som, escrevo-o, em letras MAIUSCULAS, e não me arrependo nada. Ela, só ela, ela e eu. Ela e eu no bom estilo do romântico, de velho apaixonado, capaz de tudo, por causa daquela senhora que de manhã calça sapato de salto alto, daqueles de agulha, e ao final da tarde, corre para casa, ao encontro do belíssimo baú de madeira onde guarda as velhas chuteiras ainda cheias de terra de uma infância que me teima em durar. E enquanto eu digiro as ultimas lágrimas, mais salgadas do que as primeiras, ela calça-me uma chuteira no pé esquerdo, calça a outra no pé direito dela, e pendura-se no meu colo, numa dança embalada por uma música em ré menor, e fica ali, a fazer-me sorrir, enquanto sem voz lhe peço desculpa, e as lágrimas vão perdendo o sal e a noite desce sobre os recortes de nós.
Claro que não sou eu!
(indiscrições no feminino de uma máquina fotográfica)


De maneira que quando olho para as fotografias nem acredito que sou eu. Não posso ser eu. Claro que não sou eu! Esse da foto não usa óculos e tem um sorriso branco. Esse da foto remata forte, tão forte que a bola geralmente nem se vê no instante do clique. Claro que não sou eu. Esse da foto tem uma multidão anónima atrás dele em gritaria a festejar a entrada da bola na baliza. ( Essa tal parte que o clique da máquina nunca apanhou, pelo menos nas dezenas de fotos que tenho por aqui espalhadas na parede do meu quarto, e que juro, não me pertencem, não são minhas).
Como sou cavalheiro, bem educado, finjo que me dou bem com esse da foto e às vezes, confesso, a convivência nem é assim tão má. Lá por ele ser novo e ter marcado 444 golos ao serviço do União dos Decá, não significa que eu tenha inveja dele. Lá por ele ser jovem e ter o número 10 nas costas, não significa que eu não goste dele. Lá por ele ser novíssimo e ter casado com a Matilde do quiosque, aquela de olhos meigos e corpo capaz de causar arrepios de febre, não quer dizer, claro que não quer dizer, que eu não consiga viver em paz com esse tal da foto, que bem vistas as coisas, até tem uns certos ares comigo, na parte dos olhos, (apesar de eu usar óculos), até tem umas certas parecenças comigo na estatura (apesar de eu ter barriga e mais 20 quilos do que ele), até tem uma forma de sorrir que – dizem – faz lembrar o meu sorriso ( se bem que com os dentes todos talvez fosse mais parecido). Seja como for, esse da foto, não sou eu. Mas como sou cavalheiro, e como sempre gostei muito de ver jogar o União dos Decá, vivo pacificamente com ele nas paredes do meu quarto. E finjo que não vejo a minha Matilde a olhar para ele, com olhos de febre, quando nas noites de Inverno os nossos copos velhos e cansados param de lutar embrulhados sob a colcha de renda, presente de casamento da tia Francisca.

Sunday, September 26, 2004

A história da Meia Lua
(versão feminina)
Nunca ninguém ousara perguntar-lhe a quem pertencia a barriga que gerara tão bela criatura. Era enigma. Coisa falada em segredo, três vezes benzida antes de pronunciar qualquer palavra relacionada com tal ventre. Mas como era linda aquela menina! Tinha olhos pretos, tão pretos, que ao pé deles, a noite parecia irmã do dia. Quem era o pai todos sabiam. Quem era a mãe… ninguém se atrevia sequer a querer saber. Parecia coisa de fadas. Ou diabos. Mas passemos à apresentação da história que se segue. Zé Tristão era o pai da garotinha. A mãe, já o disse, ninguém sabia quem era. Tristão nunca fora visto com mulher nem bicho parecido. Era só. Vivia só. Só ele a olhar a lua. Jogava futebol, chamemos-lhe assim, ao jogo ruim de ver e de jogar, que Zé Tristão improvisava num campo de terra, para lá do sol posto. Ai como jogava mal! Diziam as más línguas, que tamanha falta de pontaria, era por falta de mulher. Zé Tristão rematava torto, tão torto, que não raras as vezes, a bola fugia a sete ventos e desaparecia em tempo algum. Quantas bolas se perderam nos riscos do horizonte… um dia Zé Tristão saiu de Covelinhos para ir apanhar uma bola e chegou abanando o seu desajeitado tronco, as suas pernas desproporcionais a desobedecerem a qualquer matemática do corpo humano. Zé Tristão chegava feliz. Numa mão trazia a bola, na outra uma pequena criaturinha rosada e linda. Tão linda! Nunca ninguém tinha visto criança tão bonita. E juro que não estou a exagerar! Tristão engalanou-se e apresentou a pequena como sendo sua filha. A menina foi crescendo na proporção da sua desmesurada beleza. Ninguém perguntava a Zé Tristão quem era a mãe. Ao ano e meio já a garota corria mais do que o pai. No dia em que fez dois aniversários, era domingo. Zé Tristão tinha jogo de futebol. Zé pegou nas chuteiras com uma mão e com a outra segurou a mão da garota. Chegados ao campo, pegou na catraia e sentou-a em cima da baliza, no exacto lugar onde o vértice superior esquerdo segura a malha. Do lado do coração. Todos acharam que Tristão estava louco. Que ia magoar a pequena. Mas Tristão pouco se importou dos apupos. A petiza também não. Sorria para o pai com o sorriso mais belo que a sua beleza conseguia tecer. O jogo começou no final da tarde, tal a discussão que se gerou em torno de tão impróprio lugar para sentar uma criança. Era quase noite. Zé correu para a bola com o seu corpo enorme e fora de ritmo. A pequena baloiçava os pezitos ao penduro na baliza. Zé Tristão sorriu para dentro. Abriu bem as narinas, engoliu todo o ar que conseguia e rematou. Rematou forte. Muito forte. Quem estava fechou os olhos. Um aiiiiii geral encheu o campo. Um pensamento unânime gelou os corações : “coitada da menina!”. Quando os Covelinhenses abriram os olhos, a medo, viram a bola anichada no cantinho da baliza. Era já noite. A brancura da bola e da malha contrastavam com o negro do ar. Varreram com os olhos os cantos do campo.
E ao longe, ainda conseguiram ver Zé Tristão e a menina a subir muito alto, pelo lado esquerdo do céu. Contaram-me depois, foram ter com a mãe da pequena, que lá do alto, esperava a sua metade para se transformar em Lua Cheia.

Friday, September 24, 2004

Meia Lua

Em pequeno, o sobrenome Meia ditou-lhe anos de tormento. Meia leca para os mais educados, Meia foda para os outros, quase todos, escusado será dizer. As piadas, tantas, estendiam-se ao último apelido. Ou porque andava sempre de cabeça na Lua, ou então, bem pior, tinha nascido de cú para a Lua. Uma imensidão de lugares comuns bem à medida tradicional de casos à margem da social normalidade.
Há apenas um momento de esquecer tudo. E começou naquele fim de tarde, ao balcão do café do pai e da mãe, com o leite nos lábios e pão com manteiga nos dentes. Fazia isso às terças e quintas, sempre, porque as aulas acabavam mais cedo. Ao balcão do café Meia Lua, propriedade de Maria Fio de Meia e Joaquim Joaquim Sol e Lua, os pais de João Maria Meia Lua.
A hora do lanche dele, naquele dia, à hora da cerveja do senhor Campos, treinador dos iniciados do Desportivo União, traçou um futuro mais do que perfeito.
Hoje relembra quase tudo desses dias. E se sorri no minuto mais importante da sua vida, enquanto milhares estão em pânico na bancada, milhões em casa, um dezena no campo e mais uma dezena no banco, se sorri neste momento, a explicação é demasiado simples.
Está a ver-se exactamente assim, há treze anos atrás, no pelado do Clube de Futebol de Serzedo, rival eterno do Desportivo União. O sorriso é por causa dos calções largos em pano, calções velhos dos seniores, presos na cinta pelo cordão de uma chuteira que tinha esgotado o prazo de vida. Chutou para ganhar.
Está hoje também no único sítio da área onde a linha faz curva. Os nomes ditos nas bocas dos outros são outros. No único sítio da área onde a linha faz curva, faz o que tem a fazer.
Demasiado simples para ele, João Maria Meia Lua. Já só responde por Meia Lua. Mas é o de sempre: apenas filho do Quim Quim e da Mimi.

Thursday, September 23, 2004

Tudo
(menina)

De futebol não percebo nada. Aliás, não percebo nada de quase nada. E no entanto gosto de quase tudo. Eu que sempre quis pouco, vou conseguindo a pouco e pouco o pouco que pedi. Tenho domingos à tarde e campos de terra batida com gente de sardas a rir e a correr aos circulos em busca da tal magia que só se consegue agarrar aos domingos à tarde quando se corre em campos de terra batida com o céu azul recortado entre duas balizas. E tenho conversas banais, tão banais que para mim passam a ter a importancia que lhes devo nestas teclas de computador. De futebol não percebo nada. Aliás, não percebo nada de quase nada. E no entanto gosto do céu azul recortado entre duas balizas.

Saturday, September 18, 2004

Morrer em campo - I

Não lhe vou dar nome, nem número, nem cor à camisola.
Prefiro ignorar se chovia ou se me cegava a luz dos holofotes.
Esqueci o resultado, limpei da memória o tempo que faltava para jogar. Mas jogámos, todos, o tempo que faltava para jogar, para que ele pudesse sair dali e declarado morto no hospital.
A bola ia e vinha sem sentido. Como o fim de uma vida.

Friday, September 17, 2004

Amor à camisola - manias de homem

Volto a ser um puto quando olho para ti. Pego-te sempre com a mesma ternura e quando toco em ti suspiro aquela tranqulidade só nossa.
Amo-te ao jeito de uma moda antiga.
Que importa se dizem que já não me serves, que engordei ou que encolheste.
É só contigo que ando às riscas. Serves-me à medida, na horizontal do verde e do branco. Somos sagrados quando o leão encosta ao coração.
Perdoo-te todos os defeitos e acho até gostar deles. Cravo as mãos em ti nos dias felizes e só te largo para dormir. Ficas deitada a meu lado.
Sonho um amor eterno. Por acaso é real. Obrigado por existires. És boa parte de mim.
Não se vê, mas por dentro sou gémeo de ti.

Vieram mil por nós os dois


Vieram uma vez por outra, em quase todas as semanas, mas não todos os dias.
Vieram por nós os dois. Um e outro vieram se calhar só uma vez.
Mas também eles vieram por nós os dois.
Viram os treinos, os ensaios tácticos, as entradas mais duras, de carrinho ou pé em riste. E os desarmes limpinhos.
Viram fintas, viram golos, bolas amortecidas no peito, chutos em arco e de bico. Os falhanços na cara do golo, as defesas impossíveis... os ais e os uis.
Os pontapés de saída, de baliza e até de bicicleta. Braços no ar, alegria e desalento. Lágrimas felizes, lágrimas tristes. E eu contigo ou tu comigo. Em casa e nos jogos fora, ao sol e à chuva. Em estádios cheios ou com bancadas desertas.
É lindo o futebol e as palavras que escrevemos com ele. Golo número mil.
De volta
( meninices)

Já passaram mais de cinco anos. Estou de volta. Estamos de volta. Domingo há jogo no mesmo campo, naquele campo, que foi pretexto de escrita de uma primeira escrita neste blog. Cinco anos. Mais? Mais. Muito mais. Daqui de onde eu estou vejo agora as linhas de campo desenhadas de outra forma. Não estou no pico da idade, ainda não, para lá caminho, mas o sol já não me cega, nem a noite me mete medo. Vou jogar. Eu e a Sandra e a Carla e a Inês e todas as outras que um dia fizeram parte da minha vida. Estamos outra vez juntas. Outras vez. Já não há o Rui nem o Carlos nem o Nuno. Há nós a rir e a correr pelo campo a desenhar linhas imaginárias que levam a bola em atrevidas danças até à baliza onde a apoteose do golo será uma espécie de final feliz com pontos de exclamação para nós, sim para nós, para mim e para a Sandra e para a Inês e para a Carla e para todas aquelas que aparecerem por aí e que queiram ser outra vez meninas a correr sob campos imaginários com balizas e golos e bolas e risos e suor e tudo o que me apetecer pensar e escrever e inventar porque nos golos da minha cabeça mando eu , só eu, e eu gosto muito de marcar golos de cabeça. Tenho dito. E disse. E escrevo. Muito.

Thursday, September 02, 2004

Restaurante Portugal
Ir ao mercado e voltar e mãos abanar. Ou de bolsos vazios. Ou os dois. Ou não.

Alberto não dorme, nem mesmo fora de serviço. Alberto está dois passos à frente, é o homem do leme, o caça talentos, o senhor intuição.
Cheira-lhe que peixe graúdo pode resolver o problema e sabe da importância vital de uns quantos jaquinzinhos. Do oito ao oitenta, dois ou três recém-nascidos podem ser levados para o viveiro, os de melhor "potencial" aparente. E aqui ninguém melhor do que Alberto para escolher.
Lembra, orgulhoso, há uns tempos atrás, aquele pequeno comprado no leve-três-pague-um, aquele vindo por excesso para possiblitar a vinda de outro. O que não era para vir, esse que foi embora há dois meses, para a mesa quatro, a peso de ouro. Fez-se peixe pelas mãos dele, peixe a sério.

O fundo para a aquisição dá para tudo. Peixe graúdo, para lucro imediato, ou escamas despercebidas, a médio prazo. Ou então os dois.

Alberto faz contas e contas, pé ante pé, marginal fora, depois cidade dentro. Vai. Volta.
Faz contas e contas. Se chega assim ao mercado, sem fórmula para decidir, há-de voltar a cometer o mesmos erros de há dois anos atrás.
Talvez seja melhor dormir sobre o assunto, regressar amanhã, passar a noite a reflectir os porquês de o chefe de cozinha, cargo que acumulava com o de mesa, ter escolhido emigrar.
Logo agora que o Restaurante Portugal voltou às páginas dos guias estrada, como o melhor da europa.
Amanhã, Alberto vai decidir mal. Pouco importa. Usa e deita fora. Até um dia.




Wednesday, July 14, 2004

O defeso

Regresso à vista. Estamos quase de volta. Entretanto, há por aí antonioonline.blogspot.com
Estamos a preparar o nova época sem reforços...a transferência vais ser apenas de palavras e de...ideias

Saturday, June 19, 2004

Primeira vez
(ela)



Era sábado e o sol estalava nas nossas cabeças. Junho no pico é assim. Fechou a porta de casa e partiu. Era a primeira vez que ia ao futebol. E logo em dia de jogo grande. Não fora escolhido por acaso. Nada da sua vida era por acaso. O marido, os dois filhos, o piriquito, os três bonsais. Mariana - acho que pode muito bem chamar-se Mariana a menina desta história - nunca se tinha sentado numa bancada de um campo de futebol. Mas aquele era o dia. Tinha-o decidido meses antes. Comprou o bilhete pela net, não disse nada ao marido, nem aos filhos. Comentou ao de leve com o piriquito, mas não fosse ele aprender magias de palavras com os primos papagaios e Mariana, a menina desta história, virou-se para os três bonsais e foi com eles que se aconselhou nesta aventura do futebol. Inventou uma sessão de chá com as amigas e naquele sábado inicio de tarde, deixou os miudos com a avó, o Francisco com o trabalho, o piriquito com o T2 apertado e os três bonsais no banco de frente do carro. E lá foram. Era junho, já o disse, e o sol estalava como só os sóis de junho estalam na cabeça de quem se atreve a sentar-se numa bancada de futebol num pico de tarde. Os bonsais tiveram que ficar no carro, porque não tinham bilhete, mas Mariana entrou. Devidamente revistada, devidamente entusiasmada ainda que a medo que o medo tomasse conta dela.Ainda não tinham passado sete minutos e já Mariana desenrolava a bandeira do país que levava na mochila e limpava as lágrimas. Jurou. Futebol nunca mais. Futebol na televisão nunca mais. Ao vivo era bem melhor.

Saturday, May 22, 2004

Quatro linhas femininas



Uma.Uma linha.Manuel sorri do lado de lá da linha.Tem 44 anos, é enfermeiro, casado, tem um filho.
Duas.Duas linhas.Guilherme, divorciado, 34 anos, duas filhas.
Três.Três linhas. Rita, futura advogada, 24 anos, solteira,independente.
Quatro.Quatro linhas.Nuno, 14 anos, não faz nada.
Nas quatro linhas que se seguem, falam-se e cruzam-se quatro vidas. Quatro jogos. Bola ao centro.Prim.Começou. É dia quatro do quarto mês de 2004.Há sol. Estádio do Quarteto, Quarteira. Manuel lembra-se do filho, 4 anos, menino reguila, adepto incondicional da equipa do Quarteto.A mulher, grávida de 4 meses, está em casa a fazer a quarta mantinha de lã para o berço que já dorme no quarto do bebé que ha-de vir.Manuel puxa de um cigarro.O quarto do dia.Abençoado estádio que lhe permite fazer estas diabruras sem se considerar um demónio maníaco a um passo de deixar negros os ainda não pulmões do bebé que ha-de vir.Guilherme olha o relógio. Quatro da tarde.Daqui a nada volta a casa. Não tem ninguém à espera. Já lá vão 4 anos.O telemóvel da Rita estremece. Uma mensagem.«Aparece logo.Fico à tua espera....no quarto».Quatro pontos.Quatro reticencias.Não foi engano.Três é banal.Quatro é mais do que três, ensaia outros anseios.... Rita sorri para o telemóvel, ajeita o cabelo,cora baixinho.Nuno grita.Porra!Foi quase golo.Puxa as calças,alisa o suor.Olha para o relógio.Quatro e quatro.Foi num dia quatro de outro ano que lhe tiraram o pai, tinha ele quatro anos.Quatro balas no peito - numa guerra que não viu. Manuel encosta-se, Guilherme alinha-se, Rita ajeita o decote,Nuno olha para nada. Quatro vezes quatro.Num dia quatro de um quarto mês de 2004. Não é muito normal, mas esta história só faz sentido - se é que é possivel ter sentido uma história escrita em volta de um quatro, se acabar com o numero quatro a marcar o quarto golo da equipa do Quarteto, na Quarteira.Reza a história que agora escrevo, às quatro horas, quatro minutos e quatro segundos.

Thursday, May 20, 2004

Quatro linhas

Agarrado. O sol, os 31 graus e as miúdas em bikini tornam-se insuficientes para me levantar do sofá. Perdem para o frigorífico até cima de cerveja, para os 2 maços de cigarros e para o marisco enviado pelo avô.
Sozinho sou tanta gente: o motorista do autocarro, o peão na passadeira, o homem da portagem, o senhor do talho, o executivo, o servente de pedreiro, o técnico informático. Todos somos um. Ansiosos da final, campeões de trazer por casa.

A televisão convida para a minha sala os jogadores no aquecimento já no rectângulo do jogo. Drogo-me com aquelas quatro linhas, fazem-me super-homem, imbatível, destemido. Agarrado até ao fim. Vamos ganhar.

Friday, May 14, 2004

Regresso após lesão

Não jogar com as letras durante 27 dias deve doer tanto como estar sem tocar numa bola durante o mesmo período de tempo.
Em diversas ocasiões, parar é um sentido obrigatório: caminho solitário para perfeição.
Estar de volta é estar melhor, é sentir o sentido da saudade. No mundo das palavras é um exclusivo: PORTUGAL.

É bom inventar frases, partir para cima do teclado, ir à esquerda e à direita, em velocidade, fintar lugares comuns, parar a respiração com o peito, chutar, em força, com jeito, letras e letras, fazer golos de improviso.
Amo as palavras e os passes. As frases, as jogadas. Os textos e os jogos. Livros e campeonatos.

Thursday, May 13, 2004

mais de mim em: www.calor.blogspot.com

Sunday, May 09, 2004

Fim de campeonato
(ela)




E pronto. Ponto final. Fim de jogo. Fim de campeonato. Virar de página.
Esta tarde enquanto esperava cheia de frio pelo fim do jogo entre o Moreirense e o Alverca, dei por mim a pensar
que o futebol é mesmo mesmo muito parecido com a vida. Frase feita, bem sei, frase escrita e dita por um amigo
que também cabe neste texto. Mas é verdade. Esta tarde vi os olhos tristes dos homens de Alverca a deixarem os olhos alegres dos jogadores do Moreirense. E vi-me a mim, a olhar para ambos. Fora de jogo, olheira de novos talentos, desejosa de encontrar nuns e noutros motivos que me fizessem sorrir. O futebol é como a vida. Tem partes, substituições, lesões, cartões vermelhos, advertências. Há sempre alguém, ingratamente conhecido por andar vestido de negro, que é como se de uma sombra se tratasse, um aviso de cuidados. E afinal, está lá sempre. Quer os jogadores gostem ou não das suas decisões. O futebol é como a vida e o arbitro de futebol é como a morte. Corre-se corre-se e para-se quando ele quer. Quando ele diz «já chega», mesmo que o resultado não interesse a uma das equipas ou a ambas, mesmo que os adeptos chorem nas bancadas desejosos de um minuto mais para mudar o destino de um jogo, que às vezes é também o destino de uma vida, de um clube, de uma nação. Ou mesmo que o jogo apeteça continuar pela magia que nasce dele. E no entanto o arbitro manda parar e não fala. Faz-se ouvir de outra forma, chega implacável, sem nem mais nem porquês. E fim. O jogo acaba. E renasce noutro campo, noutro dia, mas nunca de forma igual, mesmo que os jogadores sejam os mesmo. É por estas e por outras que eu não tenho dúvidas nenhumas em afirmar que o futebol é como a vida, independentemente das caras, dos sorrisos, das histórias e estórias, dos amores e desamores. Não há dois clubes iguais, dois jogadores com a mesma magia. É por isso que o futebol é um acto de amor. E a vida é única. Tal como não há dois arbitros iguais. Ainda que quase todos sejam motivos de queixas e lamurias. Como a morte.

Monday, May 03, 2004

Num domingo de Maio
o fim de ti



Arrastam-se as cadeiras. O apito final está aí.
Colarinhos bem passados, é domingo, dia de festa. Não há gente neste espectáculo.
Apenas os artistas desfilam as suas roupas domingueiras neste Domingo sem gente e sem festa.
Ao longe advinho-te nas bancadas. Uma sombra de calor percorre-te e deixa-te ainda mais azul. Ris.
Ris de tudo e de nada. Dizes-me que sou tua. Lá baixo, lá baixo onde o espectáculo é espectáculo, lá baixo, dizia, joga-se outro mundo. Redondo.
Tu estás sózinho na bancada. Ris. Sorris. Abanas a cabeça a cada lance perdido. Se fumasses imaginava-te a deitar o fumo
em circulos e mais circulos, que se perderiam no céu. Azul. Mas não fumas. E ris-te. Passas a mão pelo cabelo.
Golo. É golo.
Levantas-te ligeiramente. Vejo-te o corpo desenhado. Voltas a passar a mão no cabelo. Castanho. E ris. Beijas-me. Passeias-me as mãos pelas pernas pouco cruzadas. Domingo. Domingo de Maio.
Sózinha vejo-te sózinho com os olhos pregados no espectáculo. Choro a tua tristeza. Choro a minha solidão. Choro a nossa vida. Choro-nos enquanto tu ris. Sózinho.
É domingo, dia de jogo, dia final da festa. Não há gente no espectáculo. Imagino-te sentado numa das muitas cadeiras. E choro. Choro a tua ausência. A tua morte. Porquê?«Só Deus tem os que mais ama.»
Num domingo igual ao que aí vem, num dia de Maio como o que se aproxima. E o teu corpo ainda está presente, moldado em mim palmo a palmo, beijo a beijo. E no entanto foi num domingo como aquele que aí vem que tu foste embora. Fim de jogo. Fim de mim.

Sunday, April 18, 2004

Três em um
- anúncio televisivo em directo para uma lavagem mais eficaz



Reunidos em torno de mesa, cinco homens debatem ideias.
Analisam ao detalhe um estudo de mercado sobre as cores e os padrões do campeonato do país.
O azul, o verde, o vermelho, o xadrez.
O azul é o mais forte, é o melhor vai ganhar na outra semana ou na outra a seguir.
O verde não deve ganhar...mas nunca se sabe.
O vermelho dificilmente deixará de ser terceiro, porque não joga para isso, porque a qualidade é curta lá atrás.
O xadrez morreu e ressuscita. Morreu e diz-se morto para lugares europeus.

Um jogo, num estádio, com duas equipas, com meia dúzia de adeptos e um filho da puta com apito na boca.

Um jogo em que o verde ganha... e é derrotado por dois amarelos inventados à pressão, alta se calhar. Um jogo em que um avançado agarra um defesa e ganha uma falta de golo. Um jogo em que, outro avançado, a muito menos dos 9 metros e 15 impostos pelo lei, impede a marcação de um livre e para cúmulo arranca o cartão vermelho ao marcador do livre.

Três em um. O azul vai ser campeão mais cedo do que o previsto e salvaguarda-se de imprevistos.
O vermelho passa a ver mais de perto a liga dos campeões. O xadrez, morto e ressuscitado, fica um pontinho da europa.
E tudo por obra e graça, apenas e exclusivamente, de: um grande filho da puta.


Nota: alta, há-de ser, a do relatório do moço. O "exibe-tomates-às-senhoras-da-polícia". O "inventa-cartões-amarelos-à-pressão-em-lances-que-nem-sequer-são-falta", o "marca-foras-de-jogo-a-atletas-que-estão-no-meio-campo-defensivo-e-partem-isolados-com-55-metros-para-a-baliza".

E se me perguntarem: no meio de tudo isto não há intervenientes castigados? Vou ser obrigado a responder: há. Mas são verdes.

Tuesday, April 13, 2004

Quatro três três

É bonita, dizer quanto não se diz.
Mora naquela rua lá do outro lado, aquela pela areia fora, ao lado das canas, à frente do mar.
No número 433. Quatrocentos e trinta e três. Quatro três três, conjugação numérica de táctica de futebol.
Joga-se pelos flancos, abre-se o adversário para atacar pelo meio.
Estica-se a paciência, até aos extremos, guarda-se o golpe fatal para o coração.
Vou jogar este jogo contigo.
O número da tua porta há-de ser o código para entrar em ti.

Saturday, April 03, 2004


Pensando bem...
(ela regressa aos relvados, ou pelados.)



Está a chover. Uma chuva que não é miudinha e que não molha só os tolos.
A minha mulher está a arrumar a cozinha, meto a mão ao bolso, tenho dinheiro, vou ao futebol.
É tarde de domigo. Enfio-me no velho Fiat, ligo a rádio na Renascença. Lisboa é bonita. Parece uma senhorinha, às vezes. Outras, uma velha muito velha,
experiente e sofrida. Outras ainda uma rapariga de vestido branco, virgem nos movimentos, à espera de prazer. É bonita a minha cidade.
À porta do estádio já há mais como eu. É domingo e devem ter dinheiro. Ainda é cedo, deixo-me estar no carro.
Sou eu quem daqui a nada vai entrar em campo. Vou sorrir para os fotografos, falar com os jornalistas. Hoje não vou obdecer à lei da rolha.
Hoje, vou falar, alto e bom som. Vou dançar por cada golo que marcar, embalar estes milhares de adeptos no baile das minhas ancas.
Vou levantar os olhos ao céu, vou apontar para um lugar infinito e serei estrela, amanha, nos jornais desportivos.
Hoje o jogo é meu. É domingo e tenho dinheiro no bolso.
Mas pensado bem, acho que afinal não vou ao futebol.
Vou buscar a minha Adelaide, pagar-lhe uma meia de leite e uma torrada e contar-lhe histórias desta tarde, que afinal, é minha.

Monday, March 29, 2004

Entra o dia, sai a noite
Substituições. Tudo o que for preciso para ganhar
Virar o jogo ao contrário

São quase horas de acordar. O jogo acaba hoje, de uma ou de outra forma.
Equipo-me a rigor, saco do armário o conjunto alternativo. Calças, Blazer. Em preto. As meias, os sapatos, o cinto e a camisa.
Salto para o chuveiro antes do início da partida. Demoro. Ensaio a táctica, espalho a espuma de barbear, concentro o olhar nos olhos do espelho. Em cada passagem, a gillette ouve-me uma frase. Foi a última palestra.

Os minutos passam, a hora aproxima-se, o ritmo aumenta. A camisa por dentro
por dentro das calças. Aperto de cinto determinado. Blazer de uma vez só. Sapatos: um, dois.

O estágio é longo, no carro, em andamento. Voltas em que volta tudo a passar diante. Está na hora. Não vou.
A perder, que seja por falta de comparência.
Imagino-te no estádio do nosso desafio, da nossa final. Equipamento habitual.
Calças descida, justa, camisa justa, decote. Sandália alta. Casaco fino sobre a mala, " mais vale o brio do que o frio".

Ainda esperas à hora em deveríamos estar nos penaltys. Vejo-te do outro lado da rua. Levantas-te, sais e acontece essa coisa dos pressentimentos. Levantas a cabeça para me ver. Olhos nos olhos ouvimos o apito final.
Só volto a casa de manhã.


Tuesday, March 23, 2004

Cinco bolas por 5 escudos de sete em sete dias
- estrelas em plástico, madeira e ferro -

Um menino pede, pede muito, para os anos virem depressa. Não pelos anos. Para crescer.
Nunca participa, de facto, na festa. É o público. Sentado de joelhos na cadeira atrás de uma das balizas.
"2 cafés, meia de leite, 1 pingo claro"
Em pé aparece o cabelo... e os olhos se em bicos de pé.
Escapa por milagre às bolas fora.
"sai 1 torrada, 1 galão e 1 pirolito"
Hoje só vieram três, um está doente. O puto vai jogar, na posição de público, de joelhos na cadeira, mas vai jogar.
Mão esquerda no meio campo de 5, direita no ataque de três.
Falta força no centro, sobra jeito na frente. O complemento suficiente à experiência da defesa.
5 bolas = a vitória ou derrota.
" 1 chá, 1 queque, 2 finos"
Já só faltam 7 dias para próxima vez.
" 7 chicletes"
Adeus até para a semana.



Joãozinho
(visão feminina da vida pouco direita de um extremo-esquerdo)




Era de todos o mais incompreendido.
Joãozinho. Na escola o menino gozado era bom a matemática e mau a português.
Joãozinho, extremo-esquerdo.
Olhos enormes, sorriso feio, feiinho… cabelo despenteado e pele cor de terra batida.
Joãozinho. Não havia conta que ele falhasse. «Dois passes vezes três livres, isso dá…seis remates»,
concluía Joãozinho com o tal sorriso. Tanto que sorria esse menino! E para o caso, sorrir nem sequer era uma vantagem.
Joãozinho extremo-esquerdo não tinha amores, porque as meninas fugiam dele a sete pés.
Não tinha amigos, porque os amores dos amigos fugiam dos amigos de Joãozinho mal o vissem sorrir. E como Joãozinho sorria!
Olhos grandes. Demasiado grandes. Dizia o professor de Geografia que a grandeza das crateras dos vulcões não era nada
comparada com as pupilas de Joãozinho. Indiferente a tudo, Joãozinho sorria. Extremo-esquerdo. Sempre.
Aos domingos depois da missa, Joãozinho corria corria corria pelo lado esquerdo de qualquer lado,
atrás de bolas imaginárias que sorriam para ele, com a boca escancarada em histórias de couro que só Joãozinho entendia.
Joãozinho ouvia e sorria. Indiferente a tudo.
Extremo-esquerdo.
Porque nunca lhe deu jeito ter o coração do lado direito.

Monday, March 22, 2004

Segunda-feira todo o dia

É do tempo dos calções em pano e das camisolas grossas em malha quente, de gola justa ao pescoço.
É do tempo das chuteiras pretas, e só dessa cor, do tempo de as amarrar de acordo
com a moda: simplesmente sobre o peito do pé em laço, em duas voltas pelo tornozelo enlaçadas
no tendão de aquiles, em duas voltas por baixo da sola e apertadas em nó curto no peito do pé.
É do tempo das meias simples, não elásticas, do tempo dos atilhos, os fios de apertar a meia
logo abaixo do joelho.
Recorda-se do inverno gelado e do sol quente da primavera aos domingos de manhã.
E da agitação após o jantar das noites de sábado. De deitar-se amarrado às chuteiras com os braços.
De não domir e de ver nelas os golos da próxima manhã.
Aos domingos ela vem sempre, quase da altura do pai.
É mais bonita na primavera e serena no inverno.
Ele é do tempo em que o árbitro só veste de preto. Mal escuta o último apito já está a sonhar outra vez.
Para ele já é segunda-feira. Ela está sentada na esplanada. Dizem olá.
Falam do mundo das camisolas quentes,
das chuteiras pretas e só dessa cor, dos calções de pano. Não falam do óbvio. Sentem e basta.

Friday, March 19, 2004

Entre a rua e a areia

Costumava ser ao fim da tarde. O sol aproximava-se das dunas, sorria para nós e continuava a descer,
quando já não o viamos, sobre o mar.
Costuma ser dia sim, dia não ou quando nos apetecesse.
Um livro sobre o volante, o teu corpo no meu colo. Cabeça adormecida no ombro.
Música no número 2 do volume.
Costumava ser perfeito.
As rodas encostavam na areia. As de trás não chegavam à rua.
O teu sono era meu.
O espaço está lá, diante das dunas. Esta lá e não está. É outro. Uma tira amarela para gente e bicicletas.
Passo sem pressa. No número 2 do volume. Fala de um jogo que acabou de acabar.
Em que todos ficaram a perder. O vencedor e o derrotado.





Sumário nº4: O futebol é o Pai de todos os desportos.O melhor do mundo. Pelo menos para os filhos.

Wednesday, March 17, 2004

Pretextos
(olhares femininos sobre um mar sem cor)




Falas-me sem pausas do que te atormenta.
O trabalho, sempre o trabalho.
O estômago, a cabeça, os rins, a falta de ar, os problemas de respiração que se agravam dia após dia.
Ouço-te neste início de tarde como em tantas e tantas outras.
«Sim, eu sei. Eu sei que deve ser difícil», respondo-te. «Claro que te dou atenção!», continuo.
Falas-me neste início de tarde de futilidades.
Dos carros, do trabalho, da filha da tua irmã que te riscou uma disquete ou um CD, ou coisa do género. Falas-me e eu não te ouço. Tens razão.
Falas e eu prendo-me no mar.
É bonito o mar, não é? Eu sempre achei que o mar não ter cor. Não é azul, nem verde, nem cinzento. É mar.
Gostava de ter um mar no meu quarto.
Falas-me e eu deambulo o olhar entre a água e o areal imenso que se estende aos meus pés.
«Sim, estou a ouvir-te. Diz!», continuo.
Um menino queimado pelos primeiros sóis brinca na areia. Um cão corre para a água.
Uma senhora gorda deita-se entre as rochas. Um casal de namorados passeia em conversas mudas.
Estico-me na cadeira, imagino-me pequenina outra vez, sou eu quem brinca nesta praia.
A areia húmida cola-se aos meus pés.
Escrevo com conchinhas os problemas que mais me afligem, numa espécie de síntese, e depois espero que a água os apague e volto feliz para o areal seco, com menos problemas. Fácil.
E deito-me ao sol a sentir a agua salgada secar na pele, a tirar-lhe a elasticidade.
Neste início de tarde, falas e eu não te ouço.
Apetece-me continuar nesta praia de menina e acreditar que o mar não tem cor e que as coisas más
desaparecem ao toque da água.
Estico-me mais uma vez na cadeira. Falas, falas, falas. Ao longe vejo uma imagem perfeita.
Duas balizas no areal, dois meninos. Um deles está bem ao centro da baliza.
Tem uns calções azuis. O cabelo castanho muito escuro.
Vejo-o no enquadramento da baliza, o mar em segundo plano, o céu escondido na neblina deste inicio de tarde
em que tu falas e eu não te ouço.
Parece-me feliz este menino que espera a bola neste quadro perfeito em que está pintado.
Lembro-me: o futebol é um belo pretexto para escrever. E escrevo.

Thursday, March 11, 2004

O maior guarda-redes do mundo
(meninices)





Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá.
Assim era o seu nome.
Há quem afiance que Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá era o homem mais alto do mundo.
O maior entre os maiores. O homem mágico que não cabia na baliza.
Mas Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá nem sempre teve uma vida feliz. Não teve não senhor.
Eu sei-o e posso falar, porque conheci-o numa tarde de chuva, tarde cinzenta de um mês de Agosto.
Daqueles dias estranhos que parece que não cabem nos calendários. Mas vamos ao que interessa.
Ou seja, a Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá, o homem mais alto do mundo.
Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá era guarda-redes da equipa dos Asas Negras numa África que eu só conheci das histórias de colo do meu avô.
Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá, tinha corpo de homem mas era miúdo e sonhava jogar à bola.
Grande, grande, todos o mandavam para a baliza.
Ora Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá apenas sonhava em aninhar o pé num branco e preto de bola e chutar,
chutar muito forte para dentro da baliza.
Mas, raios de vida!, era ele quem a defendia!
« Manel, tu vai jogá?»
«Pois sim, Don`Ana, Lá vamos nós!» E quando dizia «Lá vamos nós!», era mesmo isso que queria dizer.
Porque quando Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá se lançava em voos para agarrar bolas, levava consigo uma migração de pássaros.
Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá foi crescendo, crescendo, crescendo. E cada vez mais a baliza lhe parecia mais pequena, mais pequena, mais pequena. Nesta desproporção de tamanhos, Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá ficava sempre a ganhar e não havia bola que entrasse no seu território. Ganhava a equipa dos Asas Negras, os adeptos vibravam, Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá sofria baixinho.
Um dia, Dona Ana perguntou. «Manel, tu vai jogá?». E ele respondeu: «Hoje sim, Don `Ana, hoje vou memo jogá!»
O campo estava cheio, cheirava a açafrão. Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá ajeitou-se na baliza.
Os mãos por cima da trave, os pés quase no meio-campo.
Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá,o homem mais alto do mundo.
Uma bola vinha direitinho aos seus olhos. Manuel Serôdio de Carvalho Aguaçá esticou um dedo.
A bola tocou-lhe, fez-lhe festas, deu meia volta e voou para o outro lado do campo.
Golo. Foi golo.
Com a mão.

Tuesday, March 09, 2004

Lição nº 3
Sumário:
O futebol permite-nos fazer 30 por uma linha

Monday, March 08, 2004

Man of the match
(impressões dedicadamente femininas sobre o tal ultimo dia de um tal resto de vida de um número)



Ora aí está ele. Pé na relva, sorriso sincero, olhar distante.
Foi a mãe que lhe bordou o número que traz na camisola. Um número que obedece à magia do tempo
e vai mudando sem que lhe seja necessário dar mais pontos ou linha.
Amparado às vezes, outras não. Cai, porque qualquer jogador pode cair, levanta-se, porque os bons jogadores
levantam-se rápido.
É assim esse jogador de quem escrevo.
Escrevo apenas umas linhas que nem sequer obedecem a uma regra cientifica nem muito nem pouco certa.
É dia de jogo. Derby. Coisa em grande. Ele contra ele.
Número de camisola contra numero que se advinha. Está quase.
Nos minutos derradeiros de entrar em campo faz o que sempre fez. Supersticioso.
Chama o olhar, encaixa-o nos olhos escuros, debruça-se sobre o QWERT e inventa letras
que se encaixam na perfeição no número que carrega nas costas.
O estádio está cheio. Batem-se palmas, grita-se-lhe o nome. Chovem pipocas.
As pernas tremem-lhe de mansinho, (ele justifica no dia a seguir para os jornais,
jura que foi por causa das chuteiras que lhe ficavam apertadas).
Mexe um pé. Mexe outro pé. Direito, esquerdo, direito, esquerdo.
Ensaia um sorriso, é dia de derby.
Um frio corre-lhe onde às vezes o sangue quase chega a fervilhar.
Entrega-se sem pudor ao jogo. É dia de derby. O olhar já está outra vez lá longe.
É dia de jogo. É dia de derby. É sábado , não é domingo à tarde.

Sunday, March 07, 2004

O fim do jogo
(Uma história cor-de-rosa choque)


Há uma história inacabada cada vez que o cronómetro marca o minuto noventa, o arbitro apita,
levanta os braços e indica o caminho para os balneários.
Adelaide sabe-o bem. Viu com a barriga inchada de esperança muitas vezes a mesma imagem, o mesmo gesto,
o mesmo sentido.
Noventa minutos, noventa anos, noventa vidas que se lhe alojaram no ventre em forma de reticências.
Adelaide já não ri. Já não chora.
Conheci a Adelaide como ninguém. Sou uma das três reticências que a vida lhe deu.
Lembro-me dela de cabelo cumprido e sorriso maroto. Cheiro a sabão rosa. Os olhos verdes.
Morava numa casa baixinha, de um quarto, cozinha e sala, casa de banho e jardim.
Fumava às escondidas e lia revistas de moda.
Amou dois homens.
Tinha sempre uma braçada de flores em cima da mesa.
Gritava-me aos ouVidos na voz melodiosa que me esfrangalha de saudades: "Vive!vive!vive!"
Adelaide foi como minguém o minuto noventa.
Viveu para que esse pedaço de tempo não tivesse apenas 60 segundos.
Formou sindicatos, criou associações. Queimou bandeiras. Fez abaixo-assinados.

Morreu ao minuto oitenta e nove de uma tarde de Fevereiro.

Saturday, March 06, 2004

O fim jogo

os trocos que restam no bolso,
os últimos cartuchos, mais lenha para a fogueira



Em frente ao teclado, volta às angústias de todos os dias. É um playboy de meia idade.
Só atenta ao que perde. E se olha para trás de novo, volta a ter na frente dos olhos, desmembradas, as derrotas,
até lá muito ao fundo, sim muito para lá do sítio onde os olhos, dentro das lentes, apertados, pequeninos, deixam de ver.
A página, a mesma de todos os dias, imaculada, branca, desesperada de letras. Escuta-lhe as lamúrias, as invejas, os azares.
Diz ele: a vida toda foi um azar.
E imaculada, escuta. Quando queria ser esponja, sugar a tinta das letras, aceitar-lhe as formas. Fazer palavras.
E branca sabe de trás para a frente, tudo o ele que quer escrever, mas não sabe.
Tudo o que lhe vai lá dentro, no peito, na cabeça. Ela, deseperada de letras já sabe a desordem que o deixa em frente. Sentado.
Os amores, já os sabe como dela, as rejeições... e o azaaar. Prolongado e baixinho. O azaaaar.
A palavra maldita de um homem que tinha tudo e não soube ter.
E miserável, a bolachas e whisky, percebeu nada de ter de palpável em todos os anos. Miserável, de cigarros e pão,
decidiu deixar uma marca no mundo com um livro "A vida é um jogo, apenas um jogo, nada mais do que um jogo".
Esteve bem até ´90. Por aí, pelo meio deu de caras com a derrota, e foi dando sempre até hoje.
A primeira vez, faltavam cinco minutos para o fim.
Não era rapaz para aguentar grandes confusões,
levantou-se, recolheu jornal, já se estava a queixar de todos os degraus que tinha para subir: "só me faltava esta". Premonitório. GOLO!
Não dos dele.
"Que se lixe, o empate também dá", sempre em frente, sem voltar.
" Deixa sair depressa antes da confusão. Amanhã levanto-me cedo e vou comprar bilhete para a final em Atenas".
Já suado, mas finalmente lá em cima, na porta de saída: " UFF, estava a ver que não".
GOLO! Dos outros, outra vez. Atenas é para eles.
O último homem a sair do estádio, um playboy de meia idade, tem mais duas para contar. Só não sabe, por escrito.
Foi durante a vida, rapaz para todas a mulheres. Hora e sítio, à vontade. Muitas ao mesmo tempo, umas sem saberem das outras.
Um dia fartou-se, quis contar à namorada, falar-lhe que era o fim, de hoje em diante só para ela, calçado na honestidade de um momento.
Chegou tarde e dela apenas viu um bilhete, curto e com tudo." Até sempre Nunca mais". Premonitório.
Só com ele próprio desde então; e as conversas dentro de álcool.
Por fim: a sala de jogo a caminho de casa, mais visível todos o dias até ao que entrou e não mais saíu. Foi tudo.
Até o nada que tem vai jogando. Perdeu tudo. Azaaar.
Uma coisa ganhou e essa nunca há-de perder. O vício.
Pensava, mas não. No ecrã por cima da máquina de poker, o clube está ganhar, o outro empata. 90 minutos, prolongamento.
Ele já não vê. Acabou sentado. Uma ficha de 50 escudos na mão. Nunca há-de saber o resultado. Ninguém há-de nunca saber dele.
"A vida é um jogo, apenas um jogo, nada mais do que um jogo" . Deixou um título para um livro.

Friday, March 05, 2004

Sumário 2: O futebol é um belo jogo de equipa e um excelente pretexto para um encontro com as palavras.

Thursday, March 04, 2004

Estranha forma de prolongamento...
(minutos femininos)






José era velho. Muito velho.
De facto, era tão velho tão velho que ninguém se lembrava de o ter visto ficar velho.
Respeitável senhor, respeitável velho, reunia um misto de medo e mistério.
O velho mais velho do mundo, o velho sem rugas que era mais velho de que qualquer velho enrugado.
José gostava de rir.
Ria por tudo e por nada e ninguém sabia o que fazia um velho tão velho soltar
tantas gargalhadas a torto e a direito.
Ninguém lhe perguntava, porque nestas coisas da velhice,
todos sabem de certeza certa, que a idade é um posto,e José,
o velho mais velho que algum mundo tinha visto, era sem duvida o mais velho dos velhos.
Por isso, respeitinho com o velho.
José acordava todos os dias a sorrir.
De tarde já estava a rir e à noite rebolava de gargalhadas.
José gostava de contar passarinhos, horas e horas a fio,
sentado na cadeira de baloiço quase tão velha como ele.
( Mas nem nada nem ninguém era tão velho como o velho.)
José cheirava a alecrim e tinha a pele castanha como a terra em dias de chuva.
Os dentes eram brancos de uma brancura de nuvens e os cabelos ainda mais macios que a neve.
José era mesmo muito velho.
Tinha umas mãos enormes com que abraçava cestos e cestos de coisas nenhumas.
As mãos mais velhas do mundo que pertenciam ao velho mais velho que algum velho tinha visto.
Por ele já tinham passado milhares de velhos e todos partiam para a morte, mas José ficava.
Sem que nunca alguém lhe perguntasse porquê.
Até certo dia em que o sol queimava mais do que o habitual, José sentou-se na cadeira de baloiço, contou mais de cem pássaros e disse : “Acabou!”
O velho mais velho do mundo fechou os olhos e morreu.
Acabava o jogo.
Alguém procurou na casa do velho documentos da sua idade.
Escrito a um canto estava:
“José Taraves Leon, nascido entre os nascidos, criado sem ser criado. Duzentos anos de vida e dois mil de prolongamento”.

Tuesday, March 02, 2004

História inacabada
de um jogo perdido
numa tarde quente
de um verão passado a dois passos de distância de um balde de água. (coisas de meninas)




Hoje acordei com uma lágrima teimosa.
Baloiçava-me nos olhos numa dança infernal do ruído de ontem à noite.
Pensei: “ Se fecho os olhos choro!”. E não fechei.
Segui o ritmo do baile miudinho em que inevitavelmente se transformam todas as danças de lágrimas.
Deixei ir o corpo.
Veio-me à lembrança uma tarde quente de um Julho distante.
Um campo de terra batida, um cheiro intenso a Maias.
Os meus pais sentados ao sol, eu a sorrir. A sorrir muito.
“Agora entras tu e marcas!”, ouvi.
Entrei. Corri, corri, corri.
Levei um murro junto ao pescoço, fiquei com a voz rouca durante três semanas. Não marquei.
Perdemos o torneio mas tiramos muitas fotografias e demos muitos abraços.
E eu não chorei.

Monday, March 01, 2004

10 em dez anos

Hoje talvez não regresse ao Porto.
A estas pedras encaro-as como gente, neste raio de conversa...ora muda, ora surda.
Palavras que lhes troco com os ohos, palavras que não falo, mas digo.
Apetecia-me dormir contigo, conjugo assim, no passado, uma vontade do agora.
Se bem reparo, não é novo este pisar de com quem falo.
No chão, a caminho de ti, sou perfeito. E pudesse o chão seres tu, ouvirias, tudo ao certo.
Na realidade, e frente a frentre, entala-me esta ideia das palavras terem ouvidos.
Calo-me ao proximar de ti.
Assim, discurso à fidel, pé esquerdo, pé direito, sabendo que lá por baixo já está asfalto... é a cor do chão a 10 minutos de tua casa.
Lisboa 1994. Estava sol, era dia. Duas únicas diferenças. Esta noite volto a não ir a ti.
Seja medo, insegurança. Duas vezes, em dez anos.
É como se fosse dia de Derby em estádio cheio.
A meio campo, dominei no peito... depois o erro vai falar por mim....escreve-se com a cabeça fixada no chão. Passar todos e mais um. Fui cego por lá baixo, surdo aos avisos.
Contra tudo e contra todos, fui sózinho, passei todos e mais um.
Com ela à mercê atrapalhei-me, foi para fora, e mais 10 perderam por mim.
Vi-os sem ter olhado em volta porque os lí no número da perna esquerda dos calções.
Um pouco acima desta mão já segura por ti há dez anos; no momento em que fui para fora, cego por lá abaixo, surdo aos avisos...mudo.
Imaginando-te de branco... certa de mim.
Ainda não é hoje que decido o jogo. Antes, hei-de chegar ao Porto.
Já não falamos há 10 anos. O mundo seguiu em frente, foi de Maradona até Zidane.
Fechou um ciclo. Estou com ele.

Tuesday, February 24, 2004

Dez de Às (cartada feminina)

Nunca fui bom de números.
Sempre preferi o fascínio da conjugação das letras
às certezas universais que se dizem todas certinhas
como dois e dois serem quatro.
Nunca fui bom de números.
Aos seis anos parecia que tinha quatro.
Aos doze não me davam mais do que nove.
Não me dou com os números. Nunca gostei de fazer anos.
Aos vinte ainda não tinha barba. Aos vinte e cinco afinava sem grande afino a voz.
Aos trinta ia ao cinema sozinho. Aos quarenta e mais que muitos tinha uma manta de xadrez no sofá para me aquecer dos dias frios.
Reprovei três vezes seguidinhas a matemática e acabei por ser professor de portugues-alemão, ainda que nunca tenha conseguido somar o dinheiro suficiente para uma ida digna à Alemanha.
Faço contas para a reforma que não deve tardar e as contas que faço só me fazem acredita que afinal nem todos os dois e dois são quatro.
Não gosto de números, já o disse. Repito. Não gosto de números.
Esta manhã quando andava à procura de umas meias lavadas - de preferência duas iguaizinhas - encontrei uma camisola branca e azul.
Não gosto de números. Duas cores. Branca e azul.
Branca, de corpo, azul, a gola.
Não gosto de números. Cheirava a mofo.
Detesto números.
“Café Boavida” em letras azuis desenhadas no peito.
Dez. 10. O número. Não gosto mesmo nada de números.
Dez. Camisola de craque.
Veio-me parar às costas. Um peso a ditar sentenças numa tarde de chuva.
E eu que só joguei futebol uma vez na vida, num jogo de bairro e porque o Manel Texugo tinha partido um pé numa briga de rua.
Dez. Uma única vez nesta vida sem direito a dois e dois… muito menos quatro.
Quanto mais dez…
Eu, avançado de responsabilidade (é ele quem conta)

Venho com ela nas mãos, em passos lentos, parado no tempo.
Dou-lhe carinho, esfrego na camisola, faço-a girar entre os braços
num ritmo descendente.
Quando toca no chão, já sabe que lhe vou bater, ao de leve, ou com força.
Olha para mim, vê-me a afastar, em passos lentos, parado no tempo.
E agora que estamos frente a frente, já me viu assim, nervoso e decidido, já
me viu com o mesmo jeito antes da euforia ou da frustração. Entre as duas, decido
com ela, à minha responsabilidade.
Fecha os olhos ao ver-me partir, imagina-me alegre ou triste, vá para rede ou para a
bancada... Cerra o semblante quando o pé lhe acerta um murro no estômago.
Amparada pela malha amparou-me a dor.
Eu guarda-redes me confesso (é ela quem escreve)


Tão poucos dos que nos vêem sabem a distancia que nos separa.
Daqui de onde estou consigo ver-te os olhos.
Semicerrados, guardam dentro deles pouco mais do que um segundo de criação,
milhares de vidas que se penduram nas tuas pupilas.
Trazes nos olhos que consigo ver à distância que estou de ti,
a vontade de gente que não conheces e que desespera um encontro feliz
com o destino vaidoso que querem agarrar depois deste segundo que o relógio
fez o favor de parar enquanto eu te vejo.
Tens medo de mim.
Sabes que eu sou feito dos mesmos olhos que tu és feito,
que guardo comigo tardes e noites felizes com aquele aroma
tão próprio de gente que se agarra às minhas pupilas
da mesma forma que se agarram às tuas. Sabes que eu não me guio pelas leis imutáveis das máquinas.
Sabes que eu sou imprevisível, até para mim.
Tão poucos dos que nos vêem neste preciso momento sabem a distância que nos separa.
Vejo-te os olhos. E eles não. É essa a supremacia que guardo deste segundo que o relógio fez o favor de parar.
Tenho medo.
Um de nós vai deixar afogar milhares de vidas que se agarram esperançadas a este baile de incertezas.
Tenho medo, porque sei que também tu não segues as regras do sempre assim.
Também tu podes neste preciso segundo piscar-me o olho numa avalanche de gente.
E afinal, tão poucos deles sabem a verdadeira distância que nos separa. Mas eu sei.
E consigo ver-te os olhos. Eles não. Chamam por ti, chamam por mim, amam-nos
e no mesmo segundo atiram-nos para a fundo deste adeus
que dura pouco mais do que um segundo e que o relógio fez o favor de parar.
Onze metros. Onze metros de vaidades e de amor.
Um 1 mais um 1, o encontro dos caprichos possessivos.
Onze metros e eu vejo-te os olhos.
E tão poucos dos que nos vêem sabem a distância que nos separa.

Monday, February 23, 2004

Baliza que perde (a menina escreve)

Hoje decidi dormir contigo. Abro-te o fecho do meu vestido de sempre, branco.
Entrego-me sem o pudor que a cor do manto que trago me obrigaria.
Por noventa minutos apenas quero sentir-me suja de certezas. Porque não as há. Não as tenho.

Vejo-te correr na minha direcção e hoje, durante os 5400 segundos que se seguem,
não vou dizer-te que não. Não sei como me sentirei amanhã. Talvez sinta o peso das imoralidades,
os olhos pesados de quem a todo custo me tentou defender de ti, mas pouco me importa
o amanhã se hoje me apetece ser tua.
Porque não acredito nas certezas certas que os homens definiram para mim,
na inevitabilidade de resultados de uma vida que querem que eu obedeça.
Pelas leis de quem me ama por me defender, hoje vou pecar. Diante de todos.
Quero lá saber se amanhã me vão maldizer.
A noite é minha e tua. Sei que vais chegar nos pés de quem me usa unicamente para se auto-satisfazer.
Mas para além das tácticas dos homens, das palavras, do depois de depois,
o que me importa é que esta noite te vais aninhar no regaço quente que guardo para ti.

E enquanto eles, os que te empurraram até mim, festejam eufóricos a sede concretizada
que os trouxe até aqui, eu rezo baixinho para que esse egoísmo dure e se esqueçam de ti. 
E assim, te deixem um bocadinho mais dentro deste meu corpo, no silêncio suave de um  
arrepio que só nós, eu e tu, só nós os que vivemos para dar prazer, entendemos.

Esta noite, abro-te o fecho do meu vestido de sempre, branco. Amanhã logo se vê.  

Saturday, February 21, 2004

Baliza, diz ele

Podia tão bem ser uma noiva, alta como sou, larga de ancas, há quem goste.
Podia ser e não sou. E não é pelo véu nestas costas que algum dia o hei-de ser.
Lá ao fundo, à minha frente, vejo outra como eu. Iguais, que nos dizem gémeas,
mas não somos. Deram-lhe vida duas horas depois de mim.
Só a vejo, não a sinto e também nunca lhe falei.
Frente a frente, em silêncio, somos euforia, desespero,
somos vida, somos morte... Terra de ninguém.
Loucos, os homens, assim nos atacam, como nos defendem, a meias de cada vez.
Hoje decidi mandar eu. Não deixei que me entrassem e tanto te vi ser entrada.
Deveria estar contente, a ver-te violada, só que aqui, a alegria é nada e sorrir seria
abrir-me.
Por mais que ame a bola, não quero que entre em mim, a não ser... a dos donos
desta casa. Porque amar a bola vinda deles faz um filho salvador. O messias,
dito golo, aquele por quem clamam as multidões.
Hoje fechei-me em meia parte aos da casa. Perdoa-me, porque pequei.
Pagas-te por mim até ao fim, ao pontapé e de cabeça e até um foi com a mão.
Não sorri, já te disse... e também não chorei.
Hoje eu, amanhã tu...
Podiamos tão bem ser duas noivas, altas como somos e largas de ancas, há quem goste.
Podiamos, mas não somos... num dia virgens, noutro putas.

Thursday, February 19, 2004

Solteiras contra casadas (por Ela)

Maio. Era uma tarde de Maio com o sol amarelo e redondo como todas as tardes de Maio que me recordo. Cinco contra cinco. Os sorrisos rasgados, “vamos lá ver quem ganha.”
O arbitro apitou, lembro-me que o vi a chegar cansado e pesado com a barriga e os anos, o arbitro, que por acaso era e é nosso tio. Priuuuuuuuuu….
E o jogo começou. Bola ao centro, dás-me um toque levezinho, eu domino com o peito do pé, também não era muito difícil, e passo para a Inês. Ela corre, corre, mas a Manuela aparece-lhe pela frente, acena-lhe com um conjunto inteirinho de panelas, um “trem” de cozinha e coitada da Inês, perde a bola. Ohhhhh!
Mas tu sempre foste muito boa a correr e não deixaste a coisa por menos, num passe digno de jogador de milhões, retiraste-lhe a bola com mestria e gritaste “Ana!!!!!!!”. Eu levantei os olhos, estava um céu azul e um sol amarelo e redondo. Ouvi-te “ Ana!!!!”, parecias estar muito longe à porta de casa a chamar-me para irmos brincar às escondidas numa outra tarde de um outro Maio. “Ana!!!!!!!!!!!”, eu corri, corri, fiquei paralela a ti, passaste-me a bola e eu segurei-a com o pé direito, vi-te a desmarcar e olhavas para mim à espera que te retribuísse a bola como quando corria para tua casa feliz com o presente de aniversário que todos os anos demorava um mês a escolher para te surpreender.
Vi-te sorrir na expectativa de abrir o embrulho, mas já lá estava a Cristina na minha frente e roubou-te o presente. Olhaste-me como quem diz “isso assim não dá!”, e senti-me envergonhada, acho que corei, (não sei bem se foi por causa do tal sol de Maio, ou por ter perdido a bola), pedi-te desculpa, disseste-me que assim não, que assim não podias ser mais minha amiga, mas eu não compreendi. Porque razão o Pedro não podia ser também meu namorado? Só porque ele já tinha sido teu namorado antes? Primeiro também, mas com o verbo conjugado no passado? E ambas sabemos que o passado é passado e vive no tempo perdido.
Golo. Ohhhhhhhhh! Foi delas.
Vi outra vez os teus olhos de repreensão, azuis como o azul do céu em Maio, deste Maio, iguaizinhos aos de outro Maio passado.
Corri, corri, ganhei a bola, pensei que uma amizade não acaba por causa de uma bola perdida a meio campo. A Manuela com o trem de cozinha ficou para trás, passei a Cristina, a Eva e a Paula.
Olhos altos enquanto te ouvia sorrir e brincávamos no rio, na piscina, ajudavas-me a fazer os trabalhos de matemática, eu ensinava-te as teorias de Platão, abraçavas-me feliz no primeiro dia de Universidade, corávamos quando contávamos as primeiras das primeiras vezes das descobertas mágicas dos corpos, com o primeiro dos primeiros amores, (que por acaso até foi o mesmo e que naquela tarde de Maio estava sentado na “bancada” a assistir ao jogo), o campo parecia uma estrada larga feita para os meus pés, a bola um cachorrinho obediente.
“E afinal”, dizias-me “ a minha mãe nunca iria gostar do Pedro. Tenho que arranjar um moço certinho como o Zé.”
E agora que o Pedro está na bancada a ver jogar a Manuela com o seu trem de cozinha, a baliza está muito perto e acho que vou marcar golo. No próximo jogo vais-me fazer falta do meu lado direito para me passares a bola, porque afinal a tua mãe gostou mesmo do Zé e no próximo Maio já vais estar do outro lado. Golo!!!!!!!!!
Solteiros contra casados (Colecção para Homem)

A publicidade inventa frases para conceitos, frase intemporais, muito
para além do prazo de validade de uma ideia. Quando alguns de nós eramos putos,
outros crescidos e uns quantos ainda não tinham nascido, uma voz dizia, repetidamente,
na televisão ou na rádio: "para o homem que sabe sempre o que quer".
O homem não sabe sempre o que quer, sabe o que quer às vezes, independentemente da idade
ou estado civil. Sabe sempre que quer mulheres boas, uma mulher para mãe dos filhos e futebol.
No resto, domina a incerteza e os dias ganham-se com mais ou menos inspiração, neste ou naquele
momento.
E sendo assim, não digam mais "solteiros contra casados", queiram preferir, solteiros com casados.
O joguito da bola, pressupõe antagonismo, mas neste particular é apresentado como desculpa
perfeita para deixar as gajas longe da vista e aperitivo à noite de farra (jantar, copos e gajas que
não as de todos os dias). Resultado final: ganham (mesmo) as duas equipas. É sempre que o homem quer.

Thursday, February 05, 2004

Do arco da bola

Carlinhos deixou a escola, por necessidade ou por talento nos pés, aos 10 anos.
Só teve espaço para quarta classe, com sacrifício.
Além disto, não quis, não pode, foi o destino, estava para ser assim.
Está um homem feito e as duas décadas entretanto quiseram-no
maduro e ponderado. Sabe da vida e... por ela. Alinha mais de duas frases
em economia, agricultura, ciência, medicina ou indústria.
Fez bem ao tempo que o tempo lhe deixou livre.
As tardes longas e as horas tantas fora dos treinos consumiram livros
indicados por ele à medida da curiosidade do dia-a-dia.
Amanhã não joga mais à bola e nos amanhãs que se seguem também não.
Dali até à baliza são 25 metros, mais para a esquerda. Estão 8 na barreira, o que
espera mais atrás entre os postes tapa a baliza a Carlinhos com os corpos à frente.
Três passos atrás, mão direita no suor do rosto, agora as duas nas ancas.
Pé na bola, à volta de todos, o voo do último é deseperado e curto. Entrou.
Adeus Carlinhos!
A ciência dir-te-à por a + b que a potência do remate, aliada à deslocação do corpo
e à colocação do pé, o peso y da bola e velocidade x do vento conduziram o
chuto, imaculado, entre a trave e o poste.
Para ti foi instinto...Um golo do arco da bola.

Wednesday, February 04, 2004

O Processo

Disse-me, e não foi um amigo de um amigo meu, foi um desconhecido.
Disse-me: "existem dois dados fundamentais. A fórmula para ganhar e
a justiça.
Este segundo conceito é uma teia de extremos: extremamente limitado,
extremamente difícil, controlado, cheio de respeito, para contigo e para com
todos. Até pode ser um conceito vencedor, só não é para todos os dias
e muito menos para todos os anos".
Sussura: "a fórmula para ganhar é o que o próprio nome diz. Chama-lhe
água turva se quiseres, mas acompanha com rigor os contornos da justiça,
ultrapassando-os. Não custa nada, a não ser dinheiro e/para as pessoas certas.
E nem sai caro, se pensares no lucro acumulado com a vitória, estás a ver?"
Estou... Estou a ver que não ganho.
Lição nº 1

Sumário: apesar de jogo colectivo, é essencialmente egoísta

Tuesday, February 03, 2004

A parte de trás do pé

Em diversos momentos na vida, ouvimos, por este ou por outro motivo: já está tudo inventado.
Uma sentença taxativa por excesso. Desarmável como tantas verdades absolutas, tal como na
história a seguir.
Ao movimento à rectaguarda das patas dos animais, achou-se por bem dar o nome de coice. Uma
escolha rude, à semelhança do gesto.
No jogo da bola, nos cantos, nos livres, mas sobretudo quando o árbitro não vê, alguns
iluminados concluiram que a parte de trás do pé tem utilidade: para intimidar o defesa que atrás
belisca onde pode e como pode.
Afoitos, no primado da técnica, os brasileiros apercebem-se que a parte de trás do pé também joga.
Abrem a boca aos oponentes e escondem-lhes a bola em passes de mágico.
Até que um dia, um argelino, não lembraria ao diado, mas um argelino entre a espada e a parede,
a baliza e a defesa, sem poder fazer mais nada, inspirado no instinto, chuta pela primeira vez com
a parte de trás do pé. E pareceu fácil.



Monday, February 02, 2004

Jogo aéreo

Alto e pára o baile! Acabado de entrar, o primeiro suplente utilizado, Ernesto, 1 metro e 59,
vai em corrida desenfreada para a grande área. O cruzamento espera o suficiente.
A tempo de levar a bola demasiado alta para todos, menos Ernesto, pé esquero na meia lua,
cabeça na bola em cima da marca de penalty, os dois pés no chão, os dois olhos na rede, ela abana
e a bola quieta no chão já levantou as gentes das cadeiras.
Porque tudo tem de ter um porquê, a análise na semana inteira a seguir, conclui: grande poder de elevação.
A conclusão é para o mais pequeno dos jogadores em campo.
Todos invejaram Ernesto, todos os companheiros de profissão, todos os adeptos incluindo os adversários,
e até mesmo todos os dirigentes. Todos gostavam de ter o poder de elevação de Ernesto.
OS PÉS PELAS MÃOS

Parece que tem uma mão naquele pé esquerdo. Quando dito assim, soa a elogio,
enaltece uma capacidade de tacto para além do comum, numa zona do corpo pouco
dada a sensibilidades, a não ser na planta.
A frase era mais ou menos, parece que tem uma mão naquele pé esquerdo,
e descrevia Maradona. Falava do pé que em pequeno controlava laranjas com perícia, apoidado
no direito, cochinho, subindo degraus.
Já que em português no entendemos, juntar os pés com as mãos é sempre sinal de confusão.
E Maradona é a excepção que confirma a regra. Neste exemplo e noutros também.
Futebol, aportuguesado do inglês, e que nesta origem de forma minimalista é pé e bola,
joga-se por cá muito com as mãos. Há sempre um braço no ar, preparado para atirar a pedra.
Todos atiram, todos são atingidos. Ninguém se apercebe, tudo passa.
Dentro da normalidade, porque ninguém tem vergonha. Também não se pode ter o que não se conhece.
As palavras leva-as o tempo. Numa sociedade de esquecimento instantâneo.

Tal como o mundo

Poderá ser que passados mais de cem anos, o jogo seja incompreendido?
Os continentes não responderam todos da mesma forma ao apelo cronológico do passatempo, paixão, desporto, obsessão, profissão, negócio, negócio, negócio. A bola que joga com os pés, abreviado, futebol. Diz-se ser modalidade de Inverno. Nem pensar nisso. Desenvolveu-se (desenvolve-se, evolui) ao longo do equador, sem fugir dos trópicos e nem sempre.
Na relação pessoa/bola, amor correspondido, eterno, do género "e viveram felizes para sempre", só na europa do sul, mais algumas excepções no centro e nas ilhas britânicas. Só no sul da américa e não em todos os países, se calhar só mesmo em dois. Em África sem maldade, algum jeito e atraso. Por alguns anos no gelo do comunismo. Muito latina e nada asiática.

Assim como passaram séculos antes de o mundo ver a forma redonda que tinha, passaram mais de cem anos a evoluir o amor pelo brinquedo, sem descobrir a verdadeira forma do mesmo e a verdadeira forma de tratar, tocar, passar, dominar. Sem dar conta se o momento é certo para carinho ou violência, para força ou jeito, para trás ou para a frente, para um lado ou para o outro. Se instinto, se raciocínio. Quem gosta, gosta a sério. Vai atrás, faz quilómetros, vê com uma cegueira impossível de medir, consoante o caso, está bem, mas com uma cegueira impossível de medir. O branco é branco, mas também é preto, depende do lado por onde se olha.
Ganhar a vida a dar uns chutos na bola não é para todos. Todos os que ganham a vida a dar chutos na bola sabem de cor como se faz? Nada disso e antes pelo contrário. Há milhões que o fazem e 90% faz mal. Está muito, muito longe de ser redonda para todos. Isso é inaceitável. Os antigos tinham a desculpa de não saber a forma do mundo porque nunca o tinham visto do exterior, a uma certa distância, e nem precisaram de tanto para descobrirem o contorno exacto. Estes modernos da vida atractiva, sabem a linha que bola faz até fechar, sabem porque a veêm. Porque lhes disseram e ensinaram. Ganham dinheiro com ela e ela é quase sempre de outra forma que não redonda.