Friday, October 01, 2004

Claro que não sou eu!
(indiscrições no feminino de uma máquina fotográfica)


De maneira que quando olho para as fotografias nem acredito que sou eu. Não posso ser eu. Claro que não sou eu! Esse da foto não usa óculos e tem um sorriso branco. Esse da foto remata forte, tão forte que a bola geralmente nem se vê no instante do clique. Claro que não sou eu. Esse da foto tem uma multidão anónima atrás dele em gritaria a festejar a entrada da bola na baliza. ( Essa tal parte que o clique da máquina nunca apanhou, pelo menos nas dezenas de fotos que tenho por aqui espalhadas na parede do meu quarto, e que juro, não me pertencem, não são minhas).
Como sou cavalheiro, bem educado, finjo que me dou bem com esse da foto e às vezes, confesso, a convivência nem é assim tão má. Lá por ele ser novo e ter marcado 444 golos ao serviço do União dos Decá, não significa que eu tenha inveja dele. Lá por ele ser jovem e ter o número 10 nas costas, não significa que eu não goste dele. Lá por ele ser novíssimo e ter casado com a Matilde do quiosque, aquela de olhos meigos e corpo capaz de causar arrepios de febre, não quer dizer, claro que não quer dizer, que eu não consiga viver em paz com esse tal da foto, que bem vistas as coisas, até tem uns certos ares comigo, na parte dos olhos, (apesar de eu usar óculos), até tem umas certas parecenças comigo na estatura (apesar de eu ter barriga e mais 20 quilos do que ele), até tem uma forma de sorrir que – dizem – faz lembrar o meu sorriso ( se bem que com os dentes todos talvez fosse mais parecido). Seja como for, esse da foto, não sou eu. Mas como sou cavalheiro, e como sempre gostei muito de ver jogar o União dos Decá, vivo pacificamente com ele nas paredes do meu quarto. E finjo que não vejo a minha Matilde a olhar para ele, com olhos de febre, quando nas noites de Inverno os nossos copos velhos e cansados param de lutar embrulhados sob a colcha de renda, presente de casamento da tia Francisca.

1 comment:

Anonymous said...

absolutmente genial.

colega de pista