Thursday, October 28, 2004

Entre Chopin e um árbitro
(ela)
Da minha avó materna herdei algumas coisas, entre elas a arte de chorar. De maneira que quando no domingo passado vi o Pedro a correr entre os miúdos que jogavam à bola no Jardim da Carreira, em Vila Real, não resisti e abri a já por si pouco fechada bolsinha da imaginação do meu saco lacrimal.
O Pedro corria e achava-se uma espécie de arbitro. Espécie, não. Ele era mesmo um árbitro e corria atrás dos putos com um assobio na boca em insistentes assobiadelas. Os miúdos, diversos Nunos Gomes e Decos, olhavam para o Pedro, imagino que com a cabeça cheia de perguntas: quem é esta criança grande? Porque se ri tanto? E de quê? O Pedro tem a minha idade e sofre de trissomia 21. Conheci-o quando tinha eu apenas seis anos. Ele frequentava a casa da minha professora de piano e durante anos frequentou também a paciência de todos nós, alunos da Laidinha. Não foram raras as vezes em que o Pedro entrou de rompante pela nossa pauta, de braço dado com Chopin, os dois em loucas genialidades, trocando os pés a cada avanço de claves de sol, deixando-nos invejosos por essa inusitada intimidade. Que eu saiba, nem mesmo o Nuno e o Paulo, agora os dois senhores professores de conservatório na capital do país, nem um nem outro tiveram honras de andar de braço dado com Chopin, em passeios pelos pianos da Laidinha. Mas não julgo que a minha carreira e a de outros como eu, tenha ficado no primeiro apeadeiro, por causa da desconcentração que o Pedro causava sempre que chegava ao pé de nós com os seus grandes olhos e o sorriso muito rasgado. O certo é que hoje, vinte e um anos depois de ter conhecido o Pedro, volto a encontra-lo, num jardim da cidade, com um apito e um papel dobrado a fazer de cartão vermelho. Corre, desequilibrado, ri muito, tornando os seus enormes olhos ainda maiores. Mostra o cartão, apita, mostra o cartão, apita, mostra o cartão, apita. E ri. Ri muito. Os Nunos Gomes e os Decos fazem-lhe fintas ( como eu o fintava ) olham para ele (como eu o olhava) e não lhe perguntam quem és tu (como eu não perguntava) e vão crescer a pensar quem é ele ( como eu cresci). E um dia, talvez daqui a vinte e um anos, venham ao jardim de Vila Real numa tarde de domingo com um livro na mão, se sentem num banco de pedra com Chopin por perto, desdobrem um cartão vermelho e façam dele um avião.

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