Wednesday, March 17, 2004

Pretextos
(olhares femininos sobre um mar sem cor)




Falas-me sem pausas do que te atormenta.
O trabalho, sempre o trabalho.
O estômago, a cabeça, os rins, a falta de ar, os problemas de respiração que se agravam dia após dia.
Ouço-te neste início de tarde como em tantas e tantas outras.
«Sim, eu sei. Eu sei que deve ser difícil», respondo-te. «Claro que te dou atenção!», continuo.
Falas-me neste início de tarde de futilidades.
Dos carros, do trabalho, da filha da tua irmã que te riscou uma disquete ou um CD, ou coisa do género. Falas-me e eu não te ouço. Tens razão.
Falas e eu prendo-me no mar.
É bonito o mar, não é? Eu sempre achei que o mar não ter cor. Não é azul, nem verde, nem cinzento. É mar.
Gostava de ter um mar no meu quarto.
Falas-me e eu deambulo o olhar entre a água e o areal imenso que se estende aos meus pés.
«Sim, estou a ouvir-te. Diz!», continuo.
Um menino queimado pelos primeiros sóis brinca na areia. Um cão corre para a água.
Uma senhora gorda deita-se entre as rochas. Um casal de namorados passeia em conversas mudas.
Estico-me na cadeira, imagino-me pequenina outra vez, sou eu quem brinca nesta praia.
A areia húmida cola-se aos meus pés.
Escrevo com conchinhas os problemas que mais me afligem, numa espécie de síntese, e depois espero que a água os apague e volto feliz para o areal seco, com menos problemas. Fácil.
E deito-me ao sol a sentir a agua salgada secar na pele, a tirar-lhe a elasticidade.
Neste início de tarde, falas e eu não te ouço.
Apetece-me continuar nesta praia de menina e acreditar que o mar não tem cor e que as coisas más
desaparecem ao toque da água.
Estico-me mais uma vez na cadeira. Falas, falas, falas. Ao longe vejo uma imagem perfeita.
Duas balizas no areal, dois meninos. Um deles está bem ao centro da baliza.
Tem uns calções azuis. O cabelo castanho muito escuro.
Vejo-o no enquadramento da baliza, o mar em segundo plano, o céu escondido na neblina deste inicio de tarde
em que tu falas e eu não te ouço.
Parece-me feliz este menino que espera a bola neste quadro perfeito em que está pintado.
Lembro-me: o futebol é um belo pretexto para escrever. E escrevo.

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